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Apresentação de um Museu

O MUSEU DA INDÚSTRIA DE CHAPELARIA DE S. JOÃO DA MADEIRA
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Sérgio Lira
Centro de Estudos de Antropologia Aplicada (CEAA)
Universidade Fernando Pessoa

Susana Menezes
Câmara Municipal de S. João da Madeira

O museu que é objecto de análise neste artigo está em fase de projecto. Trata-se da concretização de um desejo antigo de quase duas décadas da autarquia de S. João da Madeira e que corresponde a uma importância hoje quase insuspeita da indústria de chapelaria no concelho. De facto, ao longo do século XX, e em especial até à década de sessenta, a produção de chapéus foi uma das actividades industriais mais importantes a nível regional e com um significado nacional da maior relevância.

O museu terá a sua casa no que resta do edifício da Empresa Nacional de Chapelaria, a mais importante empresa do ramo até a sua reconversão e encerramento; o edifício, adquirido pela Câmara Municipal, encerrava muita da maquinaria da antiga fábrica que foi também passada para a posse da edilidade. Estas duas aquisições, e outras que se Ihes seguiram, formaram a base material de constituição do futuro museu, dotando a autarquia de um espólio notável e representativo da actividade de produção de chapéus.

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O projecto que se desenvolveu durante os dois últimos anos versou todos os aspectos necessários à constituição de um museu. Para tal foi constituída uma equipa que inclui vários elementos essenciais: coordenação de todo o projecto, coordenação científica, arquitectura, engenharia civil, ciências da educação, antropologia, arquivística. Para o desenvolvimento de aspectos mais específicos recorreu-se ainda a especialista (como é o caso dos recursos multi-media). Todo o projecto tem sido desenvolvido em estreita colaboração dos vários elementos da equipa, e essa experiência revelou-se muito profícua.

Numa fase ainda relativamente precoce do desenvolvimento do projecto, este foi apresentado como candidatura ao POC (Plano Operacional da Cultura) do III Quadro Comunitário de Apoio. Mercê do parecer positivo que recebeu do IPM (Instituto Português de Museus) e da RPM (Rede Portuguesa de Museus), a candidatura foi considerada de interesse e o projecto encontra-se neste momento financiado através do programa acima referido.

O desenvolvimento do projecto passou, nos últimos meses, por fases extremamente importantes, dentre as quais nos parece importante destacar as seguintes: o estudo prévio de arquitectura (que havia sido realizado tendo em conta o levantamento do construído existente e o organigrama resultante do primeiro esboço do programa museológico) deu lugar ao projecto de arquitectura que foi sendo desenvolvido sempre em estreita coordenação com o trabalho de elaboração do programa museológico; a par, foi desenvolvido o projecto de engenharia civil; o trabalho de terreno, no âmbito da recolha das memórias dos que trabalharam nas fábricas de chapelaria, foi desenvolvido por alunos do curso de Antropologia que elaboraram um ficheiro de informantes e usaram a metodologia das entrevistas semi-directivas para construir histórias de vida; a organização do espólio foi também iniciada permitindo obter uma ideia clara do existente; por outro lado foi também realizada observação directa de indústrias ainda em laboração no sentido de descrever a cadeia operatória e a organização espacial dos espaços industriais; sobre este trabalho de terreno desenvolveu-se o programa museológico que, para além de definir as diferentes áreas funcionais do museu, estabelece as utilizações das diversas áreas das exposições permanentes, prevendo o(s) percurso(s) de visita e as áreas de exposição e de interpretação.

O museu, conforme actualmente está projectado, é constituído pelos seguintes espaços principais: no nível da entrada principal encontra-se a recepção e a primeira área de exposição permanente, a loja e o restaurante/bar, a área de exposições temporárias e o auditório; no nível seguinte, segue a

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exposição permanente e, com outros acessos, encontra-se o centro de documentação, as áreas administrativas do museu, uma segunda sala do restaurante e o serviço pedagógico e de extensão educativa; no nível superior está situada a ultima área de exposição permanente; o sub-solo encerra uma vasta área de estacionamento automóvel, as reservas visitáveis e as reservas não acessíveis ao público, a cozinha do restaurante, arrecadações e arrumos, áreas técnicas e de apoio (laboratórios, serviços reservados, instalações de fornecimento de energia e de condicionamento de ar, entre outros).

Plantas (desenho de Arqª Suzana Duarte Fernandes)

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O museu, de um ponto de vista conceptual, pretende ser uma unidade moderna, capaz de funcionar como um pólo de desenvolvimento cultural e de fornecer serviços diversificados. Desta forma, as exposições permanentes estão projectadas para, na medida do possível, ser praticável observar as máquinas em funcionamento, sendo os funcionários do museu antigos operários da indústria, capazes de - melhor que ninguém - explicar ao visitante como se operavam as máquinas e as ferramentas, como era a vida da fábrica, quais as dificuldades, as vontades, as angústias e as alegrias de tantos que durante tantas décadas trabalharam no fabrico de chapéus. Por outro lado pretende-se que os visitantes se envolvam na exposição, podendo tocar, cheirar e ouvir o ambiente da fábrica. As exposições permanentes mostrarão toda a cadeia operatória para culminarem no produto finalizado, capaz de ser comercializado; segue-se, depois, o percurso da fábrica para o armazém e para a loja; daqui explorar-se-á o uso do chapéu enquanto fenómeno social, económico, antropológico, recorrendo a linguagens expositivas que declinam a faceta etnográfica das primeiras salas, para adoptar uma toada mais interpretativa e mais questionadora do visitante. O percurso da exposição permanente termina numa loja onde se podem adquirir os chapéus que se viu serem feitos.

Por seu lado, o espaço dedicado as exposições temporárias, ligado ao auditório, permitirá uma vasta gama de actividades culturais no âmbito da indústria ou de outros tipos; o museu fornecerá um espaço polivalente, promotor de actividades culturais diversificadas.

Os espaços de actividade pedagógica pretendem-se uma autêntica extensão educativa que funcionará em estreita colaboração e complementaridade com as exposições permanentes, permitindo e incentivando a experimentação e a realização de muitas das tarefas da cadeia operativa; no entanto estará também aberto a outras iniciativas da comunidade local ou regional, assumindo-se, desta forma, como um espaço multi-facetado e polivalente.

O centro de documentação pretende reflectir o trabalho de investigação e de preservação dos testemunhos relacionados, em primeira análise, com a indústria da chapeleira mas admite-se uma vocação mais lata que permitirá reunir e estudar os testemunhos da indústria local e regional. O centro de documentação será uma unidade multi-mediática que disponibilizará os seus recursos em vários suportes e presencialmente ou a distância. Outro dos aspectos essenciais ao projecto de museu que se desenvolveu é a ligação à comunidade. Pretende-se, como acima se referiu, trazer para o museu os

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que trabalharam nas fábricas, os seus ambientes familiares, angústias e alegrias, vida quotidiana, o caminho para o trabalho, o vestir e o despir da roupa de trabalhar, a hora da refeição; memórias que se perdem inevitavelmente com o correr dos anos se não forem recolhidas e preservadas. Não há património sem memória e a memória tende a esvair-se se não a preservarmos. O museu assume-se como um local privilegiado para realizar essa tarefa de preservação da memória, em estreita colaboração com os seus detentores. Por outro lado as indústrias ainda e funcionamento relacionadas com a produção de chapéus, serão parceiros do museu e possibilitarão o encaminhar dos visitantes do espaço museológico para o espaço fabril: da exposição de como se fazia, a nave industrial onde se faz, haverá caminho aberto pelo museu aos seus públicos.

Pretende-se, em várias das áreas do museu, fazer entender ao público o que era viver integrado na indústria de chapelaria: o que se podia comprar com um ordenado de operário, de empregado de escritório, de dono da fábrica; o que se comia e se bebia no refeitório da fábrica, as histórias que se contavam; como se chegava à fábrica (a pé, de bicicleta...); enfim, como era a S. João da Madeira do tempo em que se usava chapéu. Esta última faceta remete para um estudo mais vasto que o mero entender do processo tecnológico de fabrico: é o entender de todo um mundo urbano particularizado pela indústria de chapelaria. Neste sentido o visitante do museu será convidado a visitar os bairros operários, a refazer os percursos dos que trabalhavam na indústria de chapelaria e a perceber o ambiente que rodeava tal indústria.

Finalmente, o projecto que se tem vindo a apresentar estará realizado, a cumprir o calendário previsto, em 2003. Para que os seus responsáveis possam receber as sugestões e as críticas de todos os que, com a sua experiência, os possam ajudar, deseja-se que o projecto seja periodicamente apresentado a público, conforme recentemente aconteceu nas I Jornadas de Museologia realizadas exactamente no edifício que acolherá o museu e onde se cruzaram muitas e proficientes experiências de profissionais da museologia.


[1] Acerca deste projecto pode ser encontrada mais informação em: LIRA, Sérgio e MENEZES, Suzana - "O Museu da Indústria de Chapelaria", comunicação apresentada no âmbito do XII Encontro de Museologia e Autarquias, Outubro de 2000; ver também LIRA, Sérgio e MENEZES, Suzana - "The Hat Industry Museum of S. João da Madeira (Portugal)" in Museological Review, nº7, Leicester, Department of Museum Studies, 2000 (no prelo); ver ainda Actas das I Jornadas de Museologia, S. João da Madeira, Câmara Municipal de S. João da Madeira, 2001, (no prelo).