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RECENSÕES

HELEN FISHER,
O Primeiro Sexo. Como as mulheres estão a mudar o mundo
Lisboa: Editorial Presença, 2001, 413 PP. ISBN: 972-23-2712-7.
Teresa Mª Leal de Assunção Martinho Toldy

Publicada originalmente em 1999, sob o título The First Sex, a presente obra é da autoria de uma antropóloga da Rutgers University a quem se devem outros títulos como The Sex Contract: The Evolution of Human Behavior e Anatomy of Love: The Natural History of Monogamy, Adultery and Divorce. Helen Fisher foi galardoada com o Distinguished Service Award, da Associação Americana de Antropólogos.

O título da presente obra constitui uma réplica ao célebre título do livro de Simone de Beauvoir, Le deuxième Sexe, que, em 1949, enunciou a igualmente conhecida frase: On ne nait pas femme. On le devient. Se Beauvoir considerava que as mulheres, ao longo da história, tinham sido subalternizadas, tendo, agora, que passar por um processo de ascensão aos direitos atribuídos aos homens durante séculos, numa perspectiva que, na história do pensamento feminista, tem sido considerada como representativa de um feminismo igualitário, Helen Fisher pugna pela diferença como categoria fundamental capaz não só de explicar a realidade presente e passada das mulheres, como também de as levar a triunfar no mundo actual. Embora reconheça que Simone de Beauvoir tem razão na análise que faz da situação das mulheres em séculos passados, a autora do Primeiro Sexo pensa que o mundo ultrapassará a ideia do primeiro ou segundo sexo, dirigindo-se para uma sociedade de verdadeira colaboração, uma cultura global em que os méritos de ambos os sexos são compreendidos, valorizados e utilizados (p. 312).

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Colocando-se numa perspectiva evolucionista e biologista, a autora analisa a diferença entre homens e mulheres fundamentando-a sobretudo em estudos (e, por vezes, em especulações) de teor neurológico, acompanhados de considerações sobre a importância das hormonas para a identidade masculina e feminina, ainda que faça também referência a estudos de teor antropológico, nos quais procura as raízes sociais para a diferença de papéis atribuídos a homens e mulheres ao longo dos séculos.

Assim, no que diz respeito à identidade das mulheres a partir da diferença de estrutura cerebral, Helen Fisher conclui, por exemplo, que as mulheres possuem um tipo de pensamento contextual, holístico, intuitivo e imaginativo, tendendo para pensar em rede, enquanto os homens possuiriam um raciocínio concentrado, compartimentado, gradual. As determinações cerebrais e hormonais de cada um dos sexos (que Fisher associa por vezes a competências sociais diferentes, ficando, no entanto, a dúvida acerca de quais os factores determinantes, se os sociais, se os cerebrais ou hormonais) marcam, portanto, todos os índices da vida privada e social de ambos os sexos: a organização do poder, em todos os seus níveis e expressões, a educação, a dinâmica organizacional no interior das empresas, a intimidade afectiva e sexual. A forma como todos estes domínios se organizam e o modo como homens e mulheres se situam perante os mesmos resultam dos "talentos naturais" de cada um dos sexos.

Ora, na perspectiva da autora da presente obra, os "talentos naturais" das mulheres são mais adequados as necessidades e dinâmicas do mundo actual, pelo que as mulheres têm agora a sua oportunidade para mudar uma sociedade que privilegia o pensamento em rede, o trabalho em equipa, a capacidade de persuasão como instrumento educativo, o relacionamento entre as pessoas como dinâmica essencial ao triunfo das organizações, as formas de terapia que associam a competência técnica e o cuidado individualizado, as relações íntimas fundadas na igual possibilidade de expressão do desejo masculino e feminino e na paridade no matrimónio - em suma, uma sociedade baseada na colaboração e não na competição entre os sexos.

Pela sua importância para a compreensão do pensamento da autora, assim como pela forma como patenteiam as ambiguidades desta obra (das quais nos ocuparemos em seguida) debrucemo-nos, então, sobre os capítulos 6 e 7, dedicados respectivamente ao tema das mulheres como líderes (na sociedade civil e no governo) e a questão do modo como as mulheres estão a transformar o mundo dos negócios.

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No capítulo 6 desta obra, Helen Fisher trata, então, de um tema que se pode considerar, até certo ponto, como uma das pedras de toque para a compreensão da perspectiva fundamental da sua obra - a questão do acesso das mulheres ao poder e à liderança. De acordo com a sua tese fundamental, as mulheres participarão cada vez mais na sociedade civil (em organizações não governamentais e não lucrativas) e cada vez menos no governo formal e no sector militar. Esta "opção" feminina deve-se, segundo Fisher, às capacidades humanas das mulheres, a sua compaixão e a sua abordagem holística dos problemas sociais (p. 160), por um lado, e ao seu desinteresse pelo poder formal, em parte por desconforto perante as formas masculinas de o exercer (demasiado rígidas e hierárquicas). Sendo assim, a autora conclui que a paridade entre mulheres e homens nos governos formais será impossível de alcançar (p. 177).

Algo de semelhante se pode dizer em relação a paridade no emprego. Segundo Fisher afirma, maior parte dos homens e das mulheres com empregos tipicamente masculinos possuem um cérebro organizado de forma masculina, pelo que o grande obstáculo a paridade está, antes de mais, na relação entre a estrutura cerebral e os níveis hormonais, por um lado, e as opções profissionais, por outro lado. A autora chega mesmo a afirmar que maior parte das mulheres optam por profissões e posições pior remuneradas dado o seu maior interesse pela educação dos filhos e pelo estabelecimento de relações pessoais (cf. p. 185).

No capítulo seguinte (7), Fisher debruça-se sobre a questão da existência ou não de uma "igualdade primordial", concluindo que em muitas sociedades, as mulheres eram económica e socialmente poderosas antes dos europeus terem começado a espalhar-se pelo mundo - disseminando a sua crença de que as mulheres eram inferiores aos homens (p. 191) e levando aos outros povos o seu Deus e as suas armas (p. 193). Na sua perspectiva, o arado - a agricultura - constituiu o "toque de finados pelas mulheres", uma vez que exigiu destas novos tipos de tarefas domésticas (como fiar, tecer, alimentar o gado, fazer pão) e criar muitos mais filhos para ajudarem no trabalho em casa e na faina agrícola (cf. p. 195). Foi assim que as mulheres perderam a sua influência económica e social e se tornaram o segundo sexo, para utilizar a terminologia de Beauvoir. Agora, quando as mulheres têm menos filhos, vivem mais tempo do que os homens, a onda gigantesca de baby boomers atinge a menopausa, muitas mulheres desempenharão um papel social influente (cf. p. 206). Mais uma vez, será o seu relógio biológico a determinar o seu destino.

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Embora Helen Fisher equacione (ainda que esporadicamente) as formas sócio-políticas de desigualdade existentes entre homens e mulheres (salários desiguais, acesso desigual a ascensão na carreira profissional, por exemplo), a sua argumentação, baseada numa perspectiva biologista e evolucionista, parece não ir ao fundo destas questões, não respondendo, nomeadamente, a uma pergunta colocada pelos seus próprios pressupostos: se bastam os "talentos" cerebrais e hormonais das mulheres para que o futuro seja delas (talentos esses dos quais, no dizer da autora, faz parte a "arte" das mulheres de serem suficientemente espertas para se fazerem de burras quando é necessário - p. 94), porque motivo não conseguiram, então, elas ascender, até aqui, as posições gloriosas que Fisher lhes vaticina?
 
A ausência de resposta a esta questão poderá dever-se, em grande parte, por um lado, a sua visão evolucionista (que coloca as mulheres numa atitude passiva, a espera do momento da evolução do mundo que lhes seja propício), por outro lado, pode dever-se também a aparente ingenuidade na própria análise da situação das mulheres, ingenuidade essa que resulta da falta de uma análise séria dos mecanismos sociais que levam a subalternização das mulheres num mundo que não se reduz aos Estados Unidos da América (contexto desta antropóloga).

Além disso, o "optimismo biologista", associado ao velho cliché dos "talentos naturais", pode ser interpretado como um retorno a velha visão estereotipada da mulher como "o mistério eterno" - o "mistério feminino", estratégia que, embora não pareça ser a de Helen Fisher, poderá ser útil a perspectivas que, exaltando "a mulher", se esquecem de colocar a pergunta hermenêutica deixada por Françoise Héritier, também ela antropóloga: Como é que da diferença anatómica e fisiológica objectiva, material, irrefutável dos sexos manifesta a observação de todos os tempos, se passa, na história do Homo sapiens, a hierarquia, a categorização em oposições de tipo binário e a valorização ou desvalorização destas categorias consoante são aplicadas ao masculino ou ao feminino? (Masculino/Feminino. O Pensamento da Diferença, Lisboa, 1998, p. 275).