Pandemias esporádicas e Estados perenes:

Geopolítica e cooperação multilateral

em contexto de COVID-19

Francisco Roque de Oliveira1

RESUMO – A actual crise pandémica da COVID-19 fornece um conjunto de elementos para uma análise sob o prisma da geopolítica que remete para diversas constantes, das quais a mais saliente diz respeito à tensão recorrente entre legitimidades nacionais e supranacionais no plano das relações internacionais contemporâneas. Examinamos a situação confrontando o episódio em curso com a lição das duas anteriores pandemias esporádicas do século XXI, o SARS de 2003 e o H1N1 de 2009-2010. Paralelamente, fixamo-nos nos diferendos protagonizados ao longo destes anos pela China e pelos EUA com a Organização Mundial de Saúde, o organismo multilateral cuja lógica de cooperação serve recorrentemente de pretexto para uma disputa entre o poder dos Estados e os propósitos internacionalistas inerentes à arquitectura institucional das Nações Unidas.

Palavras-chave: Pandemias; COVID-19; cooperação multilateral; China; Estados Unidos da América.

ABSTRACT Sporadic pandemics and perennial States: Geopolitics and multilateral cooperation in the context of COVID-19. The current pandemic crisis of COVID-19 provides a set of elements for an analysis from the perspective of geopolitics that refer to several constrains, the most salient of which concerns the recurring tension between national and supranational legitimacy in the context of contemporary international relations. We chose to examine this situation by confronting the ongoing episode with the lesson from the two previous sporadic pandemics of the 21st century, SARS (2003) and H1N1 (2009-2010) outbreaks. At the same time, we focus on the dispute played out by China and the USA over these years with the World Health Organization, the multilateral agency whose cooperation logic serves as a pretext for a dispute between the power of States and the internationalist purposes proper to the institutional architecture of the United Nations.

Keywords: Pandemics; COVID-19; multilateral cooperation; China; United States of America.

Há pouco menos de uma década, Paul Benkimoun contribuiu para uma reflexão de largo espectro sobre o estado e o futuro da globalização, organizada pelo Le Monde, com uma análise crítica que articulava a intensificação das relações internacionais com a propagação progressivamente mais rápida dos agentes infecciosos. Partindo da memória muito recente da “pandemia perene” correspondente à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH/SIDA), aparecido no início da década de 1980, esta análise acabou por ter sobretudo presente os episódios da epidemia da síndrome respiratória aguda grave (SARS) de 2003 e da pandemia gripal H1N1 de 2009-2010, dois casos de propagação viral esporádica cuja rapidez e geografia ilustravam a globalização crescente das epidemias (Benkimoun, 2011). No actual contexto de propagação planetária da COVID-19 encontramos, de imediato, a confirmação do vínculo directo entre a intensidade da mobilidade global e a dimensão do impacto e do efeito instantâneo da epidemia. Se o modelo de propagação do novo coronavírus não difere demasiado do que reconhecemos nas pandemias de cólera do século XIX, na Gripe Espanhola de 1918-1919 ou nas gripes asiática de 1956-1958 e de Hong Kong de 1968-1970, a velocidade com que sucede a respectiva disseminação representou, desde a primeira hora, um dos seus aspectos distintivos (Martínez & Bombico, 2020). O crescimento exponencial de viagens internacionais salientado por Benkimoun constituiu ainda uma das principais vulnerabilidades globais consideradas no relatório A World at Risk apresentado à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em Setembro de 2019 pelo Global Preparedness Monitoring Board (GPMB), texto no qual os especialistas deste órgão criado sob a égide do Banco Mundial e da Organização Mundial de Saúde (OMS) alertaram para o risco iminente de uma pandemia de vírus respiratório de rápida evolução reforçado pelas experiências recentes da síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS), em 2012, e do Ébola, em ٢٠١٤-٢٠١٦ (GPMB, ٢٠١٩).

O alerta premonitório produzido pelo GPMB em 2019 enfatizava ainda a estreita correspondência que se conhece existir entre a ocorrência de surtos epidémicos virais e propulsores tão díspares como a evolução dos níveis de pobreza, os impactes ambientais suscitados pelo crescimento populacional, as densidades urbanas ou as alterações climáticas (GPMB, 2019). O debate colocado na ordem do dia sobre as cidades do pós-pandemia – designadamente sobre as extrovertidas e densas cidades globais, atacadas no âmago da sua vitalidade por confinamentos enérgicos e prolongados – pode bem acabar por se esbater em alterações mínimas, que confirmarão o princípio segundo o qual os processos de mudança em geografia raramente resultam em reorganizações drásticas das pré-existências socio-espaciais (Pumain, 2020; The Economist, 2020c). Mas esse provável desenlace lampedusiano não retira argumentos ao raciocínio que associa a geografia e o nível de incidência das doenças infecciosas à leitura atenta dos diversos factores que para isso concorrem – exactamente como retiramos do actual mapa mundial do paludismo, que tanto beneficiou do recuo da pobreza, como continua a ser penalizado pela sua progressiva “tropicalização”. O facto de a malária se encontrar hoje circunscrita aos países do chamado Sul global constituirá o principal factor que explica o demorado desinteresse da indústria farmacêutica pelo desenvolvimento de novos tratamentos anti-palúdicos (Benkimoun, 2011).

A disseminação em curso da COVID-19 traz também à lembrança as duas primeiras pandemias esporádicas deste século por alguns aspectos circunstanciais da sua gestão prática que são reveladoras do estado geral das relações internacionais, das suas constantes, mas também daquelas dinâmicas que, não sendo novas, parecem acelerar-se agora. O modo como as crises suscitadas pelo H1N1 e – sobretudo – pelo SARS foram geridas pelos Estados e pela OMS evidenciaram o mesmo tipo de disputas de legitimidade entre actores estatais e o dispositivo supranacional nas Nações Unidas que nos reaparece na actual crise sanitária. Sabemos hoje que a epidemia do SARS correu durante vários meses no Guangdong antes que as autoridades chinesas notificassem a OMS. A pressão política internacional que se seguiu resultou no envio de uma missão ocidental ao terreno destinada a avaliar a situação. O mesmo contexto favoreceu a adopção do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), em 2005, que pretende prevenir práticas de dissimulação como a praticada pela China em 2002-2003, reforçando de caminho os poderes da OMS. No essencial, trata-se da mesma lógica de salvaguarda de um bem público mundial que desembocou na Convenção-Quadro da OMS para o Controlo do Tabaco (2003), instrumento multilateral pioneiro negociado sob a égide da OMS contra uma das principais “epidemias não infecciosas” da actualidade (Benkimoun, 2011). Contudo, nada de substancial terá mudado na relação de força entre os principais protagonistas uma vez que o filme de há década e meia voltou a passar diante dos nossos olhos apenas com pequenos ajustes no guião.

De facto, começámos por observar o atraso de vários meses entre a eclosão do surto em Wuhan (Novembro de 2019?) e a imposição da quarentena a essa cidade (23 de Janeiro de 2020), hiato coincidente com o silenciamento imposto pela polícia de Wuhan ao médico chinês Li Wengliang, quando este alertou em finais de Dezembro de 2019 para a epidemia em curso. A isto tem-se seguido uma já extensa sequência de casos envolvendo a gestão da OMS e o incómodo desde logo manifestado por alguns Estados-continente (EUA e China, à cabeça) pela autonomia ou – usando a retórica dos próprios – pela permeabilidade das orientações saídas deste organismo onusiano às agendas particulares dos principais Estados rivais. Até ao momento, destacaram-se aqui duas circunstâncias de sinal só aparentemente contrário, mas, na verdade, coincidentes no mesmo fundo de recusa em prescindir da defesa dos valores nacionais em detrimento de um modelo internacionalista assente na primazia de valores universais. A primeira dessas circunstâncias teve por cenário a sessão virtual da 73.ª Assembleia Mundial da Saúde, a 18 e 19 de Maio de 2020, durante a qual a China foi confrontada com propostas submetidas pela União Europeia e pela Austrália para a realização de missões científicas e de colaboração no terreno que investigassem a origem da COVID-19, ao mesmo tempo que se viu desafiada pela questão do estatuto de Taiwan no seio da OMS (Lemaitre, 2020). Menos de 10 dias depois, era anunciada a saída dos EUA da OMS, reiteradamente acusada pelo presidente norte-americano de ser controlada pelos interesses chineses.

As notícias que se vêm sucedendo desde 2017 sobre a retirada unilateral dos EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU, da UNESCO, do acordo nuclear com o Irão, do Pacto global para as migrações e do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas estribam este último evento que envolve os EUA e a OMS num racional mais calculado e coerente que errático ou conjuntural. Por outro lado, a aproximação muito selectiva ao multilateralismo que a China coloca em prática desde o final da década de 1990, privilegiando as instâncias multilaterais de vocação económica como a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou as instituições de Bretton Woods, torna pouco surpreendentes as dificuldades que sente com o escrutínio e o confronto político inerentes a um areópago como a OMS (Cabestan, 2010; Bujon de l’Estang, 2014). Seja como for, a paulatina deriva de matriz isolacionista dos EUA, que apenas teve no caso OMS o seu mais recente pretexto, parece ter atingido o zénite: pela primeira vez desde 1945, os EUA não só não assumem a liderança de uma crise internacional, como contribuem activamente para minar a resposta global à crise por via dos cortes impostos à OMS (The Economist, 2020a).

Se o bullying norte-americano a organizações multilaterais como a OMS parece corresponder a uma aceleração do recuo estratégico dos EUA que vem ocorrendo desde a crise financeira de 2008, já a pró-actividade chinesa em ocupar o vazio deixado por essa retirada e – talvez sobretudo – a crescente desinibição com que o encena, demonstram a vontade de consumar um face-a-face decisivo com a única potência com a qual a China se mede. Com a globalização posta em sobressalto, é muito cedo para descortinar o futuro próximo do grande salto para Oeste – e para África – forjado pela China desde 2013-2014, com a estratégia simultaneamente terrestre e marítima das suas faraónicas “Rotas da Seda”, articuladas entre Xian, Fuzhou, Diusburgo e Veneza. A reconversão parcial destes projectos numas ainda vagas “Rota da Seda da Saúde” e “Rota da Seda Digital”, que poderão vir a minorar os previsíveis prejuízos do desinvestimento em infraestruturas pesadas trazidos pelo recuo do comércio global e pelo crescente endividamento dos principais parceiros da China na Ásia Central ou nos portos do Índico e em África, é apenas uma possibilidade mais ou menos plausível nesta altura (The Economist, 2020b). Mas, uma vez mais, temos pelo menos já um par de constâncias concretas e sintomáticas que ajudam a perscrutar o que aí vem.

A primeira diz respeito aos temas inseparáveis de Hong Kong e Taiwan, que estavam no cerne da actualidade chinesa e internacional na véspera da pandemia. Ambos ressurgiram agora através da revogação liminar por Pequim do princípio da semi-autonomia inscrito na Lei Básica do território em 1997 e da simultânea primeira declaração oficial chinesa que omite ostensivamente o compromisso de se empenhar na reunificação total da “ilha rebelde” pela via pacífica. Os conflitos, latentes ou declarados, que a República Popular da China sustenta com a generalidade dos seus vizinhos nos Mares da China Meridional e da China Oriental a propósito da delimitação das respectivas fronteiras marítimas constituem um indicador complementar dos efeitos de uma política marítima expansionista que tem na questão de Taiwan o litígio mais sensível (Colin, 2011). Não será necessário discorrer sobre as questões do Tibete e do Xinjiang para avaliar o modo como esse mesmo expansionismo, uma vez concretizado, programa a hegemonia política, económica e cultural de Pequim e gere qualquer veleidade de dissidência.

A segunda circunstância tangível de uma modificação em curso no domínio da geopolítica internacional e das suas representações traduz-se na deterioração da imagem internacional da China na Europa, algo que a China não foi capaz de revogar com o recente exercício de “diplomacia das máscaras” que quis actualizar a tradicional “diplomacia dos pandas”. Também pouco antes do início da pandemia, Bruxelas descolou pela primeira vez uma leitura acrítica e até conivente da influência benigna da China, classificando o regime chinês como “rival sistémico” na União Europeia. Acaba de o reafirmar a várias vozes, incluindo a acusação inédita segundo a qual a propaganda chinesa na Europa materializa uma ameaça híbrida, por promover desinformação deliberada sobre a pandemia (Neves, 2020). Enquanto as acusações recíprocas entre a China e os EUA crescem de tom todos os dias, contribuindo para legitimar duas retóricas de auto-suficiência nacional que se alimentam dessa mesma antinomia, este descolamento europeu em relação à China em tempos de crise sublinha desde logo um extremar das disfunções na coordenação multilateral que é indiciador de como as dificuldades de concertação internacional poderão vir ser mais sérias quando regressarmos a “tempos normais”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Benkimoun, P. (2011). Les pandémies menacent-elles l’humanité? [Do pandemics threath humanity?]. In J. P. Denis & L. Greilsamer (Eds.), L’Atlas des mondialisations [The Atlas of Globalizations] (pp. 123-123). Paris: Le Monde.

Bujon de l’Estang, F. (2014). La Chine, puissance mondiale ou super-dragon régional? [China, world power or regional super-dragon?], Revue des Deux Mondes, Décembre, 35-53.

Cabestan, J. P. (2010). La politique internationale de la Chine [China’s international politics]. Paris: Les Presses de Sciences Po.

Colin, S. (2011). La Chine et ses frontières [China and its borders]. Paris: Armand Colin.

Global Preparedness Monitoring Board. (GPMB). (2019). A World at Risk. Annual report on global preparedness for health emergencies. Geneva: World Health Organization.

Lemaitre, F. (2020, maio). Le lancement d’une enquête sur le virus place Pékin sur la défensive [Launch of virus investigation puts Beijing on the defensive]. Le Monde, 3. Retrieved from https://www.lemonde.fr/planete/article/2020/05/18/coronavirus-la-chine-sur-la-defensive-a-l-assemblee-de-l-oms_6040001_3244.html

Martínez, F. J., & Bombico, S. (2020). Pandemias e quarentenas: quando a história se cruza com o quotidiano [Pandemics and quarentines: when history meets everyday life]. CIDEHUS-Universidade de Évora. Retrieved from https://mailchi.mp/7c40026de1ca/cidehus-cincia-narrativas-de-uma-pandemia

Neves, A. M. (2020, junho). Comissão Europeia diz ter “provas suficientes” de desinformação chinesa sobre a Covid-19 [European Commission says it has ‘sufficient evidence’ of Chinese disinformation about Covid-19]. Público. Retrieved from https://www.publico.pt/2020/06/10/mundo/noticia/comissao-europeia-provas-suficientes-desinformacao-chinesa-covid19-1920140

Pumain, D. (2020). Le confinement géographique ou les vertus d’une expérience [Geographical confinement or the virtues of an experiment]. Cybergeo: European Journal of Geography [online], éditoriaux.

The Economist. (2020a, May). The American way. The Economist. Retrieved from https://www.economist.com/weeklyedition/2020-05-30

The Economist. (2020b, June). The Belt and Road Initiative. Break time. The Economist. Retrieved from https://www.economist.com/china/2020/06/04/the-pandemic-is-hurting-chinas-belt-and-road-initiative

The Economist. (2020c, June). Covid-19 challenges New York`s future. Cities after covid-19. The destiny of density. The Economist. Retrieved from https://www.economist.com/briefing/2020/06/11/covid-19-challenges-new-yorks-future


1Recebido: junho 2020. Aceite: setembro 2020.

Investigador Efectivo, Centro de Estudos Geográficos, Professor Auxiliar, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, Rua Branca Edmée Marques, 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: f.oliveira@campus.ul.pt