POR UMA HABITAÇÃO BÁSICA:

CIDADANIA, DEMOCRACIA ASSOCIATIVA

E METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS

Luís Mendes1,2

Por uma Habitação Básica (Carlos Silva et al., 2020) é uma obra que cruza de forma invulgar reflexões provenientes de três campos dos estudos da habitação que não se costumam interseccionar: i) a economia política da habitação; ii) a governança e cidadania participativa dos movimentos sociais urbanos; e iii) as metodologias de participação, capacitação e assessoria técnica das comunidades em contexto de habitação precária.

O livro, com os doze capítulos que o compõem, nasce de um esforço conjunto de compilação a partir grandemente do trabalho desenvolvido pelo Laboratório da Habitação Básica (LAHB) e pelos autores no âmbito do projeto Modos de Vida e Formas de Habitar: ilhas e bairros populares no Porto e em Braga (PTDC/IVC-SOC/4243/2014), desenvolvido pelo Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova) da Universidade do Minho.

À cabeça da obra surge o Capítulo I, de Manuel Carlos Silva, um texto de fôlego que começa por fazer uma análise estrutural da política habitacional recente no pós crise económica 2008-2009, interpretando as condições sociopolíticas que dão seguimento a uma progressiva erosão e demissão do Estado no que toca a uma política pública de habitação que se pauta mais pelo apoio à aquisição de casa própria através do incentivo à banca para concessão de crédito bonificado, do que pelo investimento efetivo nas condições materiais objetivas de alojamento das populações mais desfavorecidas dos bairros sociais e das chamadas “ilhas”, por exemplo no Porto e Braga. No cerne da clivagem entre o discurso governamental e as práticas concretas de melhoria das condições habitacionais das populações mais pobres, o autor constata a não verificação de algumas das necessárias precondições para uma ação coletiva de contestação, reivindicação e luta urbana mais consequente com a vontade de transformação da política vigente. A partir de um racional de balanço crítico de vários modelos económico-políticos, Carlos Silva procura explicar como a habitação precária está, muitas vezes, associada a comportamentos sociopolíticos de consentimento, passividade e acomodação, por parte das próprias populações, em paralelo com estratégias individualistas de resolução do problema habitacional próprio a partir de uma abordagem clientelar e patrocinal em articulação com o poder local.

O II capítulo enceta conceptualmente a reflexão para um dos eixos importantes do livro: o da democracia associativa; e é produzido a partir da tradução de textos originais de Veit Bader. Este autor define a democracia associativa como uma teoria política cuja tese assenta na ideia de que o maior número possível de atividades sociais deve ser delegada em associações voluntárias autogeridas. O associativismo é aqui descrito como a Terceira Via original, entre o individualismo de livre-mercado e o controlo estatal centralizado, sob pena do laissez-faire deixar desgovernadas largas áreas da vida social. A democracia associativa, de acordo com o autor, abre novas perspetivas de pensamento e de ação para um direito à habitação mais consequente. Sem deixar de relevar o papel do Estado, importante para manter a paz pública e o Estado de Direito, o foco orienta-se pela renovação da democracia representativa, pela democratização da economia e uma governança socioeconómica que, no caso da habitação, pode ser um estímulo à emergência de cooperativas e pequenas e médias unidades produtivas autorreguladas, antevendo um maior cooperativismo habitacional e uma lógica mais coletiva de habitar a cidade.

O III capítulo abre ao leitor o terceiro eixo prometido no título da obra: a questão das metodologias participativas. Neste capítulo, Tomás Villasante, parte do conceito de sociopraxis para analisar uma tipologia de perfis de coletividades e movimentos sociais com impactos diferenciados. O autor analisa diversas metodologias a partir dos caminhos práticos que trilhou com diversas equipas nos bairros, nomeadamente, com os movimentos, as organizações não-governamentais e as câmaras municipais, com os/as quais operou. Aplica a sociopraxis como a malha com que se cosem diversas metodologias participativas, cruzando aprendizagens oriundas de uma geografia múltipla em escalas e contextos socioculturais: as experiências do Equador, do Peru, do Chile, do Uruguai, do Brasil, das Canárias, da Andaluzia, de Madrid, do País Basco e da Catalunha. O conceito operativo da sociopraxis afirma-se enquanto ferramenta e guia de rigorosa investigação-ação, de prosseguir os diversos passos metodológicos (“os tempos de saberes”) de implementação de cidadania responsável do investigador para diagnosticar e enfrentar diversos problemas sociais concretos, assim como intervir também a nível das estrututuras maiores de desigualdade socioterritorial: a predisposição desde as experiências anteriores; construção de um plano de trabalho negociado; trabalho de campo e análises abertas; devoluções criativas e priorização; propostas integrais e sustentáveis; processo de realização e acompanhamento com monitorização.

O IV capítulo, de Fernando Matos Rodrigues e Elena Tarsi, outro texto de grande fôlego e racional pluriscalar, recentra a análise no caso da cidade do Porto, e demonstra como o direito à habitação, ainda que consagrado constitucionalmente, continua a ser o parente pobre do Estado Social. Partem de uma abordagem estruturalista do capitalismo financeiro, cuja hegemonia e fluxos transnacionais encontra hoje na produção social do espaço urbano terreno fértil para o incrível avanço da acumulação por despossessão e especulação imobiliária, ao mesmo tempo que o Estado de bem-estar é trasvestido num Estado neoliberal, permitindo que os fenómenos de gentrificação, turistificação e financeirização da habitação ponham em crise o acesso a uma casa digna não somente por parte da população vulnerável, mas também das classes médias. O capítulo, essencialmente problematizador e teórico, salpicado com algumas ricas evidências empíricas, parte do arcaboiço reflexivo de autores críticos como Ana Fani Carlos, David Harvey, Neil Smith, Edward Soja e Henri Lefebvre, construindo uma narrativa que nos transporta do direito à habitação ao direito à cidade e a sua releitura através das lentes da justiça espacial. Dentro deste quadro teórico, mobilizam-se críticas à Nova Geração de Políticas de Habitação do governo português, com um exercício de contrapropostas concretas, defendidas e implementadas pelo LAHBi, que compatibilizam a qualidade do projeto arquitetónico com a participação popular e a importância do processo para a defesa do direito ao lugar e a qualidade do espaço urbano.

O estudo de caso seguinte surge no V capítulo da obra e faz-nos viajar até à Lisboa da segunda metade do século XX, centrando-se no Plano de Urbanização da Alta de Lisboa (PUAL), cuja abordagem essencialmente empírica e historiográfica leva os autores, Gonçalo Antunes, Nuno Soares e José Lúcio a percorrerem as diversas intervenções socio-urbanísticas efetuadas na área. Os autores analisam este processo de “avanços e recuos” em vários períodos. Desde o pré-PUAL, em que o território passou de matriz rural e bucólica para dar lugar a bairros informais de habitações muito precárias que se consolidaram num curto espaço de tempo de forma fragmentada, errática e não planeada, segregados, isolados e desligados da malha urbana lisboeta, isto dos anos 1960 até meados da década de 1990. Segue-se a avaliação do próprio PUAL, entre 1998 e 2015, onde os autores identificam que os primeiros projetos para realojar os residentes dos bairros provisórios e informais do Alto do Lumiar datam de meados da década de 1980, contudo, o Plano de Urbanização não saiu da gaveta, mesmo com o enquadramento de política urbana a alterar-se, como a aprovação do Plano Diretor Municipal de Lisboa (1994) e o Programa Especial de Realojamento (1993). Só apenas com a ratificação em 1998 pelo Conselho de Ministros, o PUAL é aprovado, dando origem ao realojamento municipal de cerca de 10 000 famílias e à criação de equipamentos coletivos e espaço público que contribuem, associado ao surgimento de novos produtos imobiliários para a classe média, para a recomposição socio-espacial na área. Pensado e executado a partir de uma narrativa de mix social e mix residencial, o PUAL conjeturava uma produção interclassista do espaço residencial que os autores concluem – em tom de tendências futuras – não se ter concretizado em pleno, pelas inúmeras clivagens e fraturas de tectónica socio-espacial que persistem ao longo dos anos no mercado residencial, no espaço público, no comércio local e no sistema viário e de acessibilidades, que reforçam descontinuidades urbanas e uma lógica de fragmentação territorial que esvaziam a possibilidade de interclassismo.

Evidenciando as linhas de contínua segregação e exclusão territorial, mas agora de regresso à cidade do Porto, o capítulo VI, de autoria de Inês Barbosa e João Teixeira Lopes, desvenda, a partir de uma metodologia etnográfica visual, um interessante ensaio que recentra o olhar do leitor nas expressões dos grafitis e pichagens, como demonstração de descontentamento dos portuenses, e que pretendem denunciar, sensibilizar e mobilizar a população; face à aguda crise de habitação que se vive na cidade, em grande parte devido ao fenómeno da turistificação e gentrificação que se acirrou nos últimos anos. Os autores, mediante uma etnografia errante de flânerie crítica e comprometida, poem em marcha uma metodologia participativa de observação e interpretação das mensagens contra-hegemónicas que explodem nos muros de um espaço público profundamente dual, intersticial e heterotópico, locus e arena de lutas urbanas, que a cidade do consenso neoliberal e do pensamento único não consegue dominar, abafar, higienizar.

Em linha com esta reflexão da produção social do espaço urbano portuense, Fernando Matos Rodrigues, Manuel Carlos Silva, António Cerejeira Fontes e André Cerejeira Fontes, no capítulo VII, partem de uma leitura crítica da visão positivista e pretensamente neutra dos estudos urbanos para descrever e analisar, de modo fino e detalhado, o processo da reabilitação da «ilha» da Bela Vista na cidade do Porto, alvo de especulação, mas também lugar de resistência, evidenciando-o como um dos casos de mobilização no projeto (Serviço de Apoio Ambulatório Local) SAAL no pós-25 de Abril. Atualmente, e perante uma pressão enorme projetada na “ilha” pelas frentes contemporâneas da turistificação e gentrificação, que testou a capacidade de resistência e mobilização da Associação de Moradores e outros atores locais, foram desenvolvidos projetos de renovação e reabilitação urbana de arquitetura básica participativa para e com a comunidade, apoiada por um processo de investigação-ação e pela assessoria e capacitação técnica da comunidade levada a cabo pelo LABH, garantindo o direito à habitação e o direito ao lugar.

O eixo das metodologias participativas na obra é aprofundado com o VIII capítulo, de autoria de Joana Teixeira e Fernando Bessa Ribeiro, que reflete epistemologicamente sobre as questões metodológicas do trabalho de campo com forte componente de envolvimento participante no bairro social das Andorinhas, em Braga. Com origem na tese de mestrado da primeira autora, tratou-se de uma investigação centrada no género e na forma como as desigualdades neste campo se exprimem na vida concreta de mulheres das classes populares do bairro, expondo diversas vulnerabilidades decorrentes do seu reduzido capital económico, social e cultural, mas também as presentes no acesso e uso dos espaços públicos, através de uma apropriação muito relegada e secundarizada para o confinamento ao espaço doméstico. Foi necessário um ano e meio de trabalho de campo para conhecer e compreender os quotidianos de vida destas moradoras, sendo a principal fonte de informação os discursos das próprias, enunciados através da interação com a investigadora. Para além do inquérito, aplicaram-se métodos e técnicas de ordem qualitativa variada, tais como: a entrevista, a análise do discurso, a observação participante no quadro de uma abordagem etnográfica.

As metodologias participativas e colaborativas são exemplificadas também no capítulo IX, saltando novamente para Lisboa, com o contributo de Henrique Chaves e do trabalho que a Associação Rés do Chão realizou entre 2017 e 2019, abarcando os bairros do Condado, Marquês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas na freguesia de Marvila, espaço que tem sido marcado por lógicas de abandono e desinvestimento e, portanto, adivinhando ser uma das futuras frentes de gentrificação da cidade. À Associação presidiu sempre o objetivo, precisamente, de contrair estas lógicas, ao procurar ativar pisos térreos desqualificados e lojas desocupadas, assim como valorizar e dinamizar o espaço público envolvente que se encontre degradado e votado ao abandono. O autor demonstra como o trabalho desenvolvido por esta Associação partiu de um ponto de vista integrado, ou seja, da necessidade de conhecer o lugar onde se pretender intervir antes de realizar qualquer intervenção, assente numa metodologia de investigação-ação animada por uma equipa interdisciplinar. Assente num sólido diagnóstico, estruturou-se a metodologia através do trabalho colaborativo, agregando a cidadania participativa de pessoas da comunidade e de entidades locais em torno de propostas concretas, com apoio do Programa BIP-ZIP da Câmara Municipal de Lisboa.

Mariana Barros, no capítulo X, estabelece um debate com o outro lado do Atlântico, refletindo sobre as narrativas e práticas dos processos participativos no campo habitacional da realidade portuguesa, com vista a revelar possíveis influências dos processos brasileiros nas conceções de métodos participativos de moradores e arquitetos a partir da década de 1970 (SAAL) e o seu desmantelar durante os anos 80 e 90 – interregno neoliberal que se caracterizou por lacunas nos processos participativos – até ao lançamento do programa nacional “Iniciativa Bairros Críticos” (IBC) em 2005, em especial a experiência do Bairro do Lagarteiro. Na IBC, o Estado descentralizado, para além de regulador, promotor e executor de financiamento e de normativas sobre a política de habitação, capitaliza e organiza as iniciativas de participação local bottom-up. Na IBC foi modus operandi a administração local e os seus técnicos procurarem uma intervenção proativa e próxima no processo participativo e no diálogo com a população e as suas organizações. Os mecanismos de cooperação institucional e de governança multinível ensaiados na IBC podem ser um exemplo da valorização do trabalho dos técnicos de vários âmbitos e da interlocução para a distribuição de conhecimento técnico com a população.

Nesta linha de racional, “modos digitais e formas de participar híbridas na cidadania de ação” são o tema do XI capítulo, por David Viana, Isabel Carvalho e Maria Raquel Sousa. Os autores partem da constatação da enorme contradição entre os direitos e normas legislados e a efetiva praxis cívica nas práticas sociais, no campo da cidadania participativa, sobretudo em grupos de cidadãos com modos de vida e formas de habitar mais precárias e degradadas, já de si objeto de estigmatização territorial, mas cujas vulnerabilidades se agravam com a infoexclusão. Por isso, consideram relevante criar condições, instrumentos e modos diversos, entre os quais os digitais, para que a participação e o empoderamento da cidadania seja uma realidade. O contributo reflexivo e decisivo dos autores passa pelo fazer reconhecer da necessidade de implicar modos digitais e formas híbridas de participação de forma a gerar o “empoderamento digital” e a “cidadania de ação”. O exercício da participação cívica acompanhada pelo empoderamento digital na redução de assimetrias, desigualdades e fragilidades em modos de vida e formas de habitar contribui para a consolidação da cidadania democrática digital assente na partilha de experiências e conhecimento, de problemas e soluções, de estratégias e ações. Processos colaborativos tecnologicamente apoiados com modos digitais interativos amplificam as formas de participar no pensar em comunidade e afrontam a iliteracia digital, empoderando os cidadãos no exercício da participação cívica para a cocriação de modos de vida multifuncionais e formas de habitar mais inclusivas. Defende-se, deste modo, o recurso a processos de mapeamento digital no exercício da participação cívica, mediante utilização de dispositivos comunicacionais móveis (apps em smartphones e tablets) em mapeamentos colaborativos realizados em plataformas online de acesso livre. Estas mobilizam a intervenção e inteligência coletivas em processos de co-criação de lugares de convivência e partilha que potenciem conhecimento fundamentado e capacidade de decisão, legitimando a luta para reduzir assimetrias, construir pensamento crítico coletivo para uma justiça socio-espacial.

O XII e último capítulo da obra reproduz um texto bastante crítico de Graeme Bristol que convoca o arquiteto no seu ofício reflexivo de pensar, planear e intervir no espaço a partir de um paradigma mais emancipatório e transformativo. O autor, rejeitando qualquer neutralidade axiológica e política no ofício de arquiteto, perante o agravamento de desigualdades socioterritoriais no mundo desenvolvido e em desenvolvimento, exorta para que o arquiteto assuma as responsabilidades sociais e éticas da sua função, através de um compromisso cívico e ético na defesa dos direitos humanos no habitat urbano. Isto através do planeamento participativo e colaborativo de novas formas de habitar, atuando sobre o preconceito de género, a exclusão social, a segregação territorial e a estigmatização cultural.

À guisa de conclusão, podemos afirmar que esta obra – esforço coletivo de muitos autores críticos – anima uma relevante série de contributos teórico-práticos que, para além de aprofundarem o pensamento e a reflexão sobre o direito à habitação, problemática que tem polarizado cada vez mais espaço na agenda académica, pública e política; o cruza de forma frutífera com questões de cidadania participativa, sociedade civil, democracia associativa e metodologias colaborativas. Tudo com o objetivo de mobilizar a participação das próprias populações na construção do seu bem-estar social, a começar pelo direito à habitação como um direito humano básico que é, antes de tudo, universal, inalienável e incondicional, na senda progressista da justiça social e espacial.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto “SustainLis – Requalificação urbana sustentável e populações vulneráveis no centro histórico de Lisboa” (PTDC/GES-URB/28853/2017).

ORCID iD

Luís Mendes https://orcid.org/0000-0001-5281-4207

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Carlos Silva, M., Matos Rodrigues, F., Teixeira Lopes, J., Cerejeira Fontes, A., & Mora, T. (2020). Por uma Habitação Básica: Cidadania, Democracia Associativa e Metodologias Participativas [For Basic Housing: Citizenship, Democracy Associative and Participatory Methodologies]. Edições Afrontamento.


1Recebido: 16/02/2021. Aceite: 12/07/2021. Publicado: 27/04/2022.

Escola Superior de Educação de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, Portugal.

2 Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa, R. Branca Edmée Marques, 1600-276, Lisboa, Portugal. E-mail: luis.mendes@campus.ul.pt