Machado, A. Finisterra, LIX(127), 2024, e36597





A TRANSFORMAÇÃO DA PAISAGEM ATRAVÉS

DA LEITURA DE DUAS OBRAS DE ÁLVARO DOMINGUES





Aquilino Machado1





  1. INTRODUÇÃO


A escrita de Álvaro Domingues adquire em A Rua da Estrada (2009) e a Vida no Campo (2012) uma singular perscrutação sobre as recentes metamorfoses da sociedade e do território portugueses. Isto significa que a escrita deste autor é, no modo que importa aqui tratar, de uma outra ordem, quando comparada com um convencional discurso académico.

Mas não se pense que os textos que integram estes dois ensaios não representam um importante contributo para uma expandida problematização em torno dos domínios eleitos de investigação deste geógrafo, nomeadamente aqueles que refletem criticamente sobre a transformação e a vocação polissémica da paisagem no presente próximo. Pelo contrário, o seu discurso revela-se inovador e incisivo nos trajetos questionadores que nos propõe, sobretudo ao premiar a emergência de novos paradigmas da Geografia, que ganham conforto nas Geografias da perceção e no estudo do espaço vivido, e que parecem contrariar um carácter excepcionalista que tende a sustentar o discurso paisagístico (Domingues, 2021, 2001).

Na verdade, Domingues lê a transformação da paisagem de um modo inovador e loquazmente desafiante para o pensamento da Geografia contemporânea, sobretudo quando exibe um fio condutor que parece encadear, desde a fase inicial do seu percurso até aos trabalhos mais recentes, uma estrutura de sentido que faz da revisitação da paisagem uma força de mutação que se vislumbra e que é sempre “acompanhada pela reconstrução do quadro conceptual que a explicita” (Domingues, 2001, p. 60). Mas também a entende como um palimpsesto atual, que deixou de ser um trato etimológico exclusivo da Geografia, e que propaga a sua problematização no seio de outras áreas do saber (Domingues, 2009).

Somos levados a pensar que a partir do ensaio Paisagem Revisitada (2001) se revelam com mais acuidade algumas ideias centrais que alinham os trilhos consequentes da sua orientação teórica, tão alicerçadas por metodologias de forte caudal qualitativo – embora não denegando totalmente o quadro estruturalista – e que forjam uma leitura geográfica sobre a mutabilidade paisagística e territorial. Em todas elas, encontra-se uma evidente preocupação com as desigualdades territoriais, tão bem expressas no contexto português, sobretudo a partir do momento em que se marca um processo de “perda do Portugal Rural” (Domingues, 2012, p. 15)e com este descaminho uma ideia de atrapalhação dos referentes estáveis que compõe as imagens que as paisagens produzem.

Para melhor compreender o significado das questões contemporâneas, a sua investigação atenha a uma reflexão sobre o conceito “paisagem”, aqui apreendida como uma abordagem teórico-crítica no campo da evolução do pensamento geográfico. É, pois, um exercício reflexivo que acentua as razões que acompanham as metamorfoses profundas e firmadas num passado recente, e que em Portugal, “o último país rural da Europa, conheceram transformações profundas e radicais: uma sociedade que se urbaniza, vastos territórios em tensão (des)povoados, ainda vividos pelos últimos guardiões de culturas rurais tradicionais, envelhecidos; regiões esvaziadas, ruínas, abandono, mas também novas construções, novos modos de vida, auto­estradas, casas novas, novos sinais dissonantes na harmonia das paisagens de outrora” (Domingues, 2001, p. 56-57).



  1. DESENVOLVIMENTO


Em A Rua da Estrada (2009) e a Vida no Campo (2012) reconhecemos alguns elementos estruturais na investigação académica de Álvaro Domingues.

O primeiro, quando o geógrafo junta o seu olhar de fotógrafo para nos ajudar a interpretar a vocação polissémica da paisagem. Instantâneos que nos falam da metamorfose dos territórios, quase como um jogo de falso-verdadeiro que neles se insinuam, e que parecem transparecer uma denegação das representações do urbano e do rural e de outros conceitos que são “apenas invenções para tornar claro o que é complicado” (Domingues, 2009, p. 54).

O segundo, ao evidenciarmos o intenso labor em recoletar textos literários de escritores, preferencialmente portugueses, aqui cravados para melhor enquadrar a vocação literal que sempre acompanha as suas interpretações exegéticas. Ao colocar a tónica no entrecruzar entre o discurso próprio e alheio, com mundividências tão distintas, o autor fixa quadros explicativos que beneficiam a desmultiplicação das diversas narrativas que enleiam as paisagens (Domingues, 2017).

Assim, em A Rua da Estrada sentimos o arvoamento da mudança que afeta muitos dos atributos que julgávamos sólidos dos nossos territórios. Alicerces que se foram desmoronando mercê do desvanecimento da dicotomia rural-urbano e do sentido que acomete a passagem da cidade para o urbano (Domingues, 2009). Logo nas primeiras páginas do livro, o autor sugere que este abalo foi ainda mais profundo e levou a uma transformação dos referentes estáveis que sustentavam as paisagens:

A passagem da cidade para o urbano arrastou uma metamorfose profunda: de centrípeta, passou a centrífuga; de limitada e contida, passou a coisa desconfinada; de coesa e contínua, passou a difusa e fragmentada; de espaço legível e estruturado passou a campo de forças organizado por novas mobilidades e espacialidades; de contrária ou híbrida do “rural”, passou a transgénico que assimila e reprocessa elementos que antes pertenciam a um e outro rurais e urbanos; de organização estruturada pela relação a um centro, passou a sistema de vários centros; de ponto num mapa passou a mancha, etc. (Domingues, 2009, p. 13)

É por este caminho que trata de apresentar o argumento mais vigoroso que, do seu ponto de vista, conformou o desenvolvimento desta metamorfose: aquilo que designa de A Rua da Estrada, aqui reconhecido como um dos elementos estruturantes da urbanização extensiva. E assim, a hipótese aqui adiantada é a de que esta urbanização linear foi desenvolvida pelas fortes mutações ao nível dos sistemas de mobilidade, sobretudo pelo uso intensivo dos meios de transporte individual (Portas et al., 2003), que estimularam um mosaico funcional compósito, sem qualquer coerência formal, onde tudo se “mistura: casas, cafés, restaurantes, lojas, serviços fábricas” (Domingues, 2009, p. 15).

Diz Oriel Nel·lo (2018), ao citar Friedrich Ratzel, que no espaço lemos o tempo, uma velha máxima aqui matizada como uma interpretação à luz das transformações que ocorrem na nossa contemporaneidade. Ora, conforme terá já ficado claro, Álvaro Domingues mostra-nos que o tempo continua a ser um marcador identitário indispensável para compreendermos a produção de paisagem, no entanto, a sua leitura tornou-se mais exigente e difusa. Isto significa que o ordenamento do tempo real levou a uma inapelável metamorfose da cidade e da urbanização contaminando aquilo que dávamos como adquirido, passando a ser uma geografia desconfinada, difusa e fragmentada (Domingues, 2010).

Tal sobressalto conduz-nos a um conjunto de processos que aceleram a perceção da paisagem como uma condição transgénica. Isto é: a paisagem também é transgénica, porque se tornou uma metáfora do compósito, do inclassificável, bem assim da forma como parece revelar-se uma maior percetibilidade de uma estrutura urbana extensiva (Domingues, 2010, 2021).

E é por este devir que se chega a Vida no Campo (2012), a segunda coordenada crítica rememorada. Aqui mergulhamos na origem da transformação da paisagem de um tempo fora do tempo, que parece ter perdido o atrito, e que se distancia da marcação identitária de um Portugal rural (Domingues, 2012). Na introdução que se segue ao prefácio, o autor acentua esta ideia ao dizer que “como a língua ou a história, a paisagem é um poderoso marcador identitário, uma casa comum” (Domingues, 2012, p. 15). E, como tal, sendo a paisagem um registo de uma sociedade em mudança, o laço da sua herança é, em muitas circunstâncias, um espaço de relíquias e destroços.

Para o efeito, socorre-se de alguns exemplos que parecem cristalizar a ideia do “rol da perda de autenticidade que, de tanto mitificadas, parecem ter pertencido a um tempo primordial, sem história e sem outro referente que um passado mais-que-perfeito” (Domingues, 2012, p. 16), nomeadamente a fórmula de que nesta Vida no Campo se compatibilizava uma espécie de casulo de autenticidade onde o povo se comprazia com uma vida pobre, mas honesta. Uma felicidade rural criada, como alude o autor, pelas raízes do Romantismo e do Estado Novo, e que laboriosamente chega aos nossos dias envolta numa cartografia de contradições, onde tanto cabem estas “imagens bucólicas e os destroços desse mundo perdido”, como uma paisagem que concilia soluções que parecem tingidas de uma certa incoerência formal, e que variam “entre calamidades e incêndios, resorts para todos os gostos com uma relva e espaço verde, turismo rural, desertificação ou, ao contrário, casas e estradas por todo o lado” (Domingues, 2012, p. 62).

Mas o geógrafo adverte-nos, ainda, para o traço ambíguo que acompanha as dicotomias cidade/campo e urbano/rural, significa isto que tais nomenclaturas parecem enlear-se em explanações que ignoram as condições territoriais assoladas pelos ritmos de maior transformação, nomeadamente aquelas que se fazem sentir na chamada metropolitização do litoral e nos “núcleos ou eixos urbanos de polarização” (Portas et al., 2003, p. 25). Certamente não por acaso, são apresentados os exemplos do Noroeste de Portugal e do Litoral Algarvio, já que nos devolvem uma ampla percepção sobre a metamorfose do urbano misturada com a do rural, numa partilha de novas “territorialidades” que parece alimentar o processo de desenvolvimento da condição transgénica.

E é sobre as mudanças socioeconómicas e territoriais consequentes da perda de importância da actividade agrícola que nos falam os três capítulos seguintes, e que o autor designa de “Desruralização”, “A agricultura enquanto economia” e, ainda, “o Rural enquanto cultura e modo de vida”. Uma abordagem acertadamente presidida pelo recurso a um diagnóstico exaustivo, que nos reflecte sobre os contornos daquilo a que o autor designa de “questão poliédrica que aparece enunciada de diferentes formas consoante o modo de problematização” (Domingues, 2012, p. 69). Assim, o declínio ou transformação da agricultura, enquanto alicerce económico, impele a uma profunda alteração do mundo rural, abalando os esteios de fácies cultural, que se insinuavam pelo “modo de vida, visão do mundo, sistema de hábitos, crenças, tradições ou comportamentos” (Domingues, 2012, p. 69). Depois disso, é o que se conhece, sendo certo que não surpreende, de igual modo, que descreva esta mutação comparando a um irreprimível arrastão, onde tudo se expressa:

Desde Virgílio e as suas éclogas e bucólicas, os mundos mais-que-perfeitos como o paraíso e os Campos Elísios, o lirismo romântico e outros encantamentos, pastorais, o comunitarismo poético, a aura das coisas primordiais e sagradas, o bom povo das aldeia, os impolidos e ignorantes, os supersticiosos enredados nas crenças e na religião popular, os proletários camponeses explorados, o lugar dos antepassados, os da província, o espaço verde, o turismo rural, as excellencias da vida rústica ao estilo de Feliciano Castilho, os velhos camponeses, os pós-rurais, os arrelampamentos dos iluminados, dos fisiocratas e dos tecnocratas, a antítese dos vícios da cidade, o obscurantismo dos rústicos que não se modernizam, a cultura popular os bons estercos e a influencia n’agricultura, e o que mais vier. (Domingues, 2012, p. 121)

Então, para lá deste arrebatamento territorial, a abordagem vai na continuidade tanto do tema da desrularização como no da passagem para um novo mundo rural português, tão marcado pelo embate do declínio demográfico, da rarefação e do despovoamento (Domingues, 2012). Mas que parece também alimentar-se de expectativas e contradições tão diferenciadas onde cabem, entre tantas outras, as visões culturalistas de proteção da paisagem e do património cultural, as projeções de canibalização turística e da mitologia do regresso à terra, e o alcance produtivista que incita a uma especialização das fileiras de produção agrícolas.

Por derradeiro, diremos que nesta obra se confrontam dois tempos inconciliáveis: a perda do Portugal Rural, onde abrigamos o desaparecimento das “práticas ancestrais, modos de vida, territórios e paisagens” (Domingues, 2012, p. 15); e a hodiernidade, onde se arruma uma parafernália de paisagens de jogos aparentemente inconciliáveis, quase entendidas com uma ideia de “oxímoro territorial”.



  1. REMATE


À luz dos dois ensaios somos cotejados com algumas das inquietações epistemológicas que acompanham a demanda exegética de Álvaro Domingues. As três condições de geógrafo, ensaísta e fotografo parecem iluminar um trajecto singular que, verdade seja dita, se apresenta em continuidade com as suas obras mais recentes. E através desse processo procura explicar a Paisagem como um conceito que deixou de ser um objecto de estudo exclusivo da Geografia, ao expandir a sua problematização para outras áreas, sobretudo motivado pela vocação polissémica; mas também pondo a tónica no ritmo de transformação a que esta se acomete quando abalados os seus alicerces e se redunda numa “paisagem que entrou no desassossego” (Domingues, 2021, p. 9). A palavra do fim cunha-se, então, com uma condição transgénica, “como metáfora do compósito, do instável, do inclassificável à luz dos sistemas de classificação conhecidos” (Domingues, 2021, p.19).



ORCID ID


Aquilino Machado https://orcid.org/0000-0003-1246-0920



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


Domingues, Á. (2021). Paisagens Transgénicas [Transgenic Landscapes]. Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, LVI(118), 9-24. https://doi.org/10.18055/Finis25456

Domingues, Á. (2017). Volta a Portugal [Return to Portugal]. Contraponto.

Domingues, Á. (2012). Vida no Campo [Country Life]. Dafne.

Domingues, Á. (2010). A Rua da Estrada [The Road Street]. Revista Cidades – Comunidades e Territórios, 20-21, 59-67. https://doi.org/10.7749/citiescommunitiesterritories20-2122

Domingues, Á. (2009). A Rua da Estrada [The Road Street]. Dafne.

Domingues, Á. (2001). A Paisagem revisitada [The Landscape revisited]. Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, XXXVI(76), 55-66. https://doi.org/10.18055/Finis1621

Nel·lo, O. (2018). A Cidade em Movimento: crise social e resposta cidadã [The City in the Motion: social crisis and citizen response]. Tigre de Papel.

Portas, N., Domingues, Á., & Cabral, J. (2003). Políticas Urbanas: tendências, estratégias e oportunidades [Urban Policies: trends, strategies and opportunities]. Fundação Calouste Gulbenkian.

1Recebido: 03/07/2024. Aceite: 1/10/2023. Publicado: 14/10/2024.

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