Finisterra , LX (129), 2025, e 41 642 ISSN: 0430 - 5027 doi: 10.18055/Finis41 642 Recensão Published under the terms and conditions of an Attribution - NonCommercial - NoDerivatives 4.0 International license. PUTIN’S WAR AND THE RE - OPENING OF HISTORY” DE JEAN - FRANÇOIS CARON i P EDRO P IRES 1 O pesquisador Jean - François Caron, doutorado em Ciência Política pela Universidade Laval (Quebéc, Canadá, em 2010) e atualmente professor associado no Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nazarbayev em Astana, Cazaquistão, dispõe de um substancial histórico de obras publicadas na área da C iência P olí tica , onde aborda temas relacionados com a teoria política, ética pública e relações internacionais, com particular atenção à autoridade do Estado, nacionalismo, crise política, segurança e liberdade civil. Em obras como Les conditions de l’unité politiqu e et de la sécession dans les sociétés multinationales: Catalogne, Écosse, Flandre, Québec ( Henderson et al., 2016 ) , Caron explora os fatores que determinam a unidade e a instabilidade política nas sociedades multinacionais, enquanto em L’Occident face au terrorisme: regards critiques sur 20 ans de luterrorismette contre le terrorisme (Caron, 2021) , discute como a luta contra o terrorismo contemporâneo não pode ser levada a cabo pelas formas tradicionais. E m publicações recentes, nota - se a prevalência de te mas relacionados com o conflito russo - ucraniano, sendo os artigos “ Russia’s Iron Horse and Its Logistics Limitations in the Ukrainian War ( Caron, 2023 b ) e “ The Battle of Bakhmut: The Story of a Strategic Miscalculation ( Caron, 2024) prova dessa direção de análise. É nesta ótica que se apresent a o livro Putin’s War and the Re - Opening of History , de Jean - François Caron, publicado em 2023 (Caron, 2023a) . A obra , dividida numa introdução e em quatro capítulos: “Compreendendo as razões d a invasão da Ucrânia pela Rússia”, “O l egado e slavófilo”, “A p olítica e xterna da Rússia e a sua m udança c ivilizacional” , e , por fim , “O c ontributo i deocrático da Rússia para o m undo de a manhã” , aborda a complexidade do atual conflito russo - ucraniano, cujas origens o autor pretende determinar. A génese deste conflito, de acordo com a visão geopolítica russa é averiguado com particular detalhe, de forma a clarificar as possíveis narrativas adjacen tes à ação bélica. Após esta análise, Caron oferece uma verdadeira viagem guiada ao que acredita ser a visão russa do conflito, argumentando que a perspetiva geoestratégica prevalente no Ocidente, o Realismo uma escola de pensamento das relações interna cionais que encara a política mundial como uma competição entre Estados num sistema global anárquico não nos confere uma visão completa da natureza deste tema, particularmente o seu caráter ideológico, que conclui ser a principal motivação para a ocorrên cia do conflito. Desta forma, explora a história dessa matriz ideológica que identifica como a corrente civilizacional, fruto do legado filosófico e slavófilo do século XIX, em plena oposição à corrente liberal - ocidental. O autor finaliza a obra sublinhando o potencial desta nova corrente ideológica, argumentando que com o ganho de maior relevância no panorama global, tornar - se - á uma alternativa ao atual pensamento liberal dominante, evocando uma c ontradição à notória teoria do Fim da História de Fukuyama (1 992) . As tradicionais explicações para o desencadear do conflito são mencionadas, como a narrativa da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte ( OTAN ) pós - Guerra Fria, que ameaçou os interesses geopolíticos russos na Europa de Leste, provocando uma reação russa que, eventualmente, escalou ao ponto da guerra convencional. O contexto histórico inerente a esta explicação percorre uma lista de desejos quebrados pelo Ocidente face aos interesses geopolíticos russos num espaço que considerav a seu, o mundo pós - soviético. A alegada promessa de James Baker, antigo Secretário de Estado dos EUA, em 1990, de que a OTAN não se expandiria nessa direção caso a União Soviética permitisse a reunificação da Alemanha, exemplifica essa ocorrência. Recebido: 30/04/2025. Aceite: 26/ 07 /202 5 . Publicado: 29/07/2025. 1 Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa , Edíficio, IGOT, R. Branca Edmée Marques, 1600 - 276, Lisboa, Portugal . E - mail: pedronuno@edu.ulisboa.pt
Pires , P. Finisterra, LX (129), 2025, e41 642 Segundo o autor, as possíveis adesões da Geórgia e Ucrânia à OTAN, propostas em 2008, na Cimeira de Bucareste, representaram a confirmação final das intenções ocidentais, reforçando a posição hostil que a Rússia tomaria. A evolução desta visão também é explorada, descrevendo que a original política externa “pró - Ocidental” de Boris Yelstin, Presidente da Federação Russa durante o período 1991 - 1999, foi abalada por eventos que criaram ceticismo quanto à integridade e funcionamento da ordem internacional à qual prete ndiam aderir. A intervenção americana no Kosovo , em 1999 , e a invasão do Iraque , em 2003, ambos atos que desafiaram o consenso das Nações Unidas, criaram a perceção, para a Rússia, que a ordem global liberal não representava uma organização justa de países onde os benefícios seriam mútuos, mas uma ferramenta para impor a hegemonia americana. Deste modo, a ambição russa de ser reconhecida como uma grande potência, nunca se concretizaria. Com a dimensão geoestratégica definida, Caron averigua algumas das cons equências geopolíticas da escalada do conflito em 2022: a posição internacional da Rússia foi severamente afetada, alvo de sanções e ostracizada por importantes secções do globo; os objetivos militares russos na Ucrânia não se concretizam, o que transforma o que já seria uma controversa jogada geopolítica num autêntico desastre; e a China, que mantém relações importantes com o Ocidente, é surpreendida pela escalada de hostilidades entre os seus parceiros liberais e i liberais. Desta forma, as consequências g eopolíticas do aparente fracasso da “Operação Militar Especial” são de tal forma negativas para a suposta posição internacional russa, que a lógica geoestratégica que a devia justificar não confere respostas marcadamente satisfatórias. Logo, Caron introduz uma nova justificação para o desencadear e a persistência deste conflito: a ideológica. Para entender a influência do caráter ideológico na política externa russa contemporânea, Caron decide primeiramente analisar as raízes dessa mesma ideologia: o Eslav ofilismo. Esta ideologia define - se pela “rejeição de todos os valores considerados estrangeiros à alma russa e ligados à desordem, impiedade, instabilidade e caos da Europa” (Caron, 2023, p. 33). Surge no século XIX como resposta à visão Ocidentalista, que pretendia uma aproximação aos valores europeus provenientes do Iluminismo, e rejeita - os devido à influência da religião ortodoxa na sociedade e psique coletiva russas. Juntamente com uma visão messiânica proveniente do conceito de “Terceira Roma”, o Esla vofilismo adota uma posição irreconciliável em relação ao que considera influências heréticas. Adicionalmente, o legado político - cultural russo, como o autoritarismo de influência mongol, une - se à tradição religiosa do poder político e resulta numa concent ração de poder na figura singular do governante, reforçando a oposição aos ideais liberais ocidentais. Mesmo com o estabelecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ( URSS ) , um projeto civilizacional fruto de pensamento ocidental, o antagonismo ao Ocidente e o conceito de uma missão civilizacional distinta persistiram. Consequentemente, o modo de governança de Putin reflete a continuidade dessa tradição autocrática e repúdio pelos valores liberais ocidentais, demonstrando que o caráter ideológic o presente na política externa russa contemporânea se encontra profundamente enraizado numa perspetiva histórica civilizacional distinta e, em muitos aspetos, oposta ao Ocidente. Apesar da política externa russa pós - Guerra Fria realçar as diferenças civili zacionais existentes (excluindo a política internacionalista liberal de Andrei Kozyrev, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, 1991 - 1996, que foi rejeitada pela sociedade russa), o modo como interagia com o Ocidente mudou radicalmente. Entr e 1996 e 2012, Caron considera que essa relação consiste numa política estadista que define que “o poder, a estabilidade e a preservação da soberania da Rússia tinham de ter precedência sobre o estabelecimento da democ racia e da liberdade individual ” (Caro n, 2023, p. 59). Para alcançar esses objetivos, a política direcionada ao Ocidente foi de coexistência, cujos laços se fortaleceram sob uma visão pragmática de Putin, que pretendia alcançar o crescimento económico através de uma integração limitada. A rut ura dessa política ocorreu com as "revoluções coloridas" em países pós - soviéticos e os protestos internos de 2011 e 2012, que levaram Putin a reinterpretar o Ocidente como uma ameaça direta à identidade e soberania russas. Consequentemente, adotou uma nova política externa, o civilizacionismo, baseado na ótica messiânica da referida “Terceira Roma” e no legado e slavófilo, prevalecendo uma retórica conservadora, que critica o Ocidente pelo seu hedonismo e decadência moral. Deste modo, o conflito russo - ucrani ano, pode ser apresentado como parte dessa luta civilizacional, destinada a impedir que o Ocidente contamine a esfera cultural e política russa. A oposição ideológica à ordem Ocidental que o civilizacionismo apresenta, é de particular interesse para o aut or, que acredita no seu potencial doutrinário, prevendo a sua possível disseminação em outras regiões onde o cosmopolitismo moral do Ocidente, percecionado como imperialismo cultural, choca com os valores tradicionais preferidos. Desta forma, a convergênci a
Pires , P. Finisterra, LX (129), 2025, e41 642 3 ideológica por parte de um bloco “iliberal” poderá criar um novo confronto ideológico mundial, desafiando o “Fim da História”. Em suma, o livro explora um aspeto que considera essencial para entendimento do conflito russo - ucraniano: a visão civilizaciona l. Independentemente do grau de influência que essa vertente poderá ter no ponto de vista russo, a análise histórica e ideológica dessa perspetiva é certamente bem - vinda e esclarece o leitor em relação às suas particularidades. Igualmente bem - vindo é o esp írito crítico exibido pelo autor ao longo da obra, que confronta as narrativas estabelecidas sobre as origens do conflito. O ano de publicação deste livro constitui outro fator relevante que deve ser mencionado, já que as condições que afetam o conflito ru sso - ucraniano alteram - se constantemente. A inauguração de uma nova administração americana ideologicamente distinta da anterior representa essa volatilidade ao adotar posições marcadamente diferentes das previamente delineadas. Se, de facto, o conflito é caracterizado por este confronto de visões civilizacionais opostas, a característica mais importante deste conflito poderá ser o seu desfecho. Apesar da sua ocorrência ter impactado o globo severamente, a sua conclusão influenciará a luta civilizacional pe rmanentemente, permitindo a emergência de uma nova visão civilizacional ou o fortalecimento da já estabelecida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Caron, J. F. (2024). The Battle of Bakhmut: The Story of a Strategic Miscalculation. The Journal of Slavic Military Studies, 37(2), 216 227. https://doi.org/10.1080/13518046.2024.2373632 Caron, J. F. (2023b). Russia’s Iron Horse and Its Logistics Limitations in the Ukrainian War . The Journal of Slavi c Military Studies, 36(3), 294 302. https://doi.org/10.1080/13518046.2023.2283963 Caron, J. F. (2023a). Putin’s War and the Re - Opening of History . Springer Nature. https://doi.org/10.1007/978 - 981 - 99 - 8167 - 0 Caron J. F. (2021). L’Occident face au terrorisme: regards critiques sur 20 ans de luterrorismette contre le terrorisme [ The West faces terrorism: critical perspectives on 20 Years of counterterrorism ]. Presses de l’Université Laval. https://www.pulaval.com/livres/l - occident - face - au - terrorisme - regards - critiques - sur - 20 - ans - de - lutte - contre - le - terrorisme Fukuyama, F. (1992). The end of history and the last man . Free Press. Henderson, A., Baudewyns, P., Caron, J.F., Pittock, M., Requejo, F., Reuchamps, M...De Winter, L. (2016). Les conditions de l’unité politique et de la sécession dans les sociétés multinationales: Catalogne, Écosse, Flandre, Québec [The conditions of political unity and of secession in multinational societies: Catalonia, Scotland, Flanders, Quebec]. Presses de l’Université Laval. https://www.pulaval.com/livres/les - conditions - de - l - unite - politique - e t - de - la - secession - dans - les - societes - multinationales - catalogne - ecosse - flandre - quebec i Terceiro lugar do concurso “Livros que contam: descobre um livro e dá - o a conhecer” de 2025 parceria entre a Biblioteca do CEG - IGOT (ULisboa) e a Finisterra Revista Portuguesa de Geografia, visando estimular a escrita de sínteses de obras científicas, contribuindo para o reforço do conhecimento, da curiosidade e da criatividade dos estudantes do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT - ULisboa) e entidades parceiras.