Das pedras mortas às práticas vivas: do património material à relevância do património imaterial

Autores

  • Manuela Reis

Palavras-chave:

política do património, património material e imaterial, comunidades

Resumo

Acompanhando perspectivas culturais europeias, em reformulação desde os anos 1960, que se aprofundaram sobretudo nos anos 1970/80, importantes transformações associadas ao conceito de património ocorreram na sociedade portuguesa do pós-25 de Abril. Herdeira de concepções monumentalistas do património e de políticas centralistas que concentraram no Estado a exclusividade da sua preservação, cabendo-lhe enunciar o património a proteger e consagrar para o usar como símbolo do poder e da identidade nacional, a sociedade portuguesa foi nas duas últimas décadas desafiada por aquelas concepções e práticas patrimoniais. Enquanto instituição cultural, não só o património deixou de confinar-se aos edifícios de carácter histórico-monumental, como também a sua definição passou a integrar perspectivas de outros protagonistas além do Estado. Expressão inventada para dramatizar o fenómeno social da explosão de sítios patrimoniais, considerado como a “obsessão moderna” pelo passado idealizado perante a acelerada perda de referências sólidas de um mundo globalizado em constante mutação (Hewison, 1987; Lowenthal, 2002- [1985]), o heritage boom trouxe também à sociedade portuguesa a discussão sobre novas categorias de bens culturais patrimonializáveis, símbolos e representações do passado longínquo ou mais recente que o avanço da modernidade coloca em risco de destruição ou esquecimento. Formas de arquitectura erudita ou vernacular, urbana e rural, edifícios públicos e privados, monumentais e não monumentais, velhos edifícios industriais, cidades ou conjuntos urbanos, paisagens e contextos ecológicos em risco, saberes, técnicas, actividades e culturas em regressão ou subalternizadas convertem-se tendencialmente em património. O crescimento e a certificação da categoria “património imaterial” constitui-se como um poderoso meio de pressão política para a extensão dos bens patrimonializáveis. Pressão política, contudo, ambivalente, que tanto pode dotar as comunidades, nomeadamente rurais, de instrumentos para minimizar o processo de marginalização a que foram sendo sujeitas, quanto, pelo contrário, mascarar essa marginalização, ou, até, exponenciá-la, através da imposição de processos artificiais de salvaguarda de patrimónios que perderam os actores principais da sua sustentação.

Referências

Almeida, João Ferreira (1999) Classes sociais nos campos. Oeiras: Celta Editora.
Bauman (2001), Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Zahar.
Beck, Ulrich (1992), Risk society. Towards a new modernity, London: Sage (Edição original, 1986).
Bortolotto, Chiara (2013), “Les inventaires du patrimoine immatériel en Italie: État, régions et associations”, in Paulo Ferreira da Costa (coord.) Políticas Públicas para o Património Imaterial na Europa do Sul: percursos, concretizações, perspectivas, Colóquio Internacional organizado por Direcção-Geral do Património Cultural- DGPC, Lisboa, pp.27-41.
Brito, Joaquim Pais de (2006), “Patrimónios e identidades: a difícil construção do presente”, in Elsa Peralta e Marta Anico (orgs), Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas, Oeiras: Celta, pp.43-51.
Cabral, Clara Bertrand (2011), Património Cultural Imaterial – Convenção da Unesco e seus contextos, Lisboa: Edições 70, 323 p.
Caldéron, José Luis Mingote, (2013) (coord), Patrimonio inmaterial, museos y sociedad: balances y perspectivas de futuro. Madrid: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte de España. 298 p.
CER, V Congresso de Estudos Rurais (2010), Mundos Rurais em Portugal: Múltiplos Olhares, Múltiplos Futuros, Livro de Actas, Universidade de Aveiro, 1576 p.
http://sper.pt/oldsite/4cer/LivroActasFinal_corrigido.pdf
Choay, Françoise (1996), L’Allégorie du Patrimoine, Paris : Seuil.
Costa, António Firmino (1999), Sociedade de Bairro, Oeiras: Celta.
Costa, Paulo Ferreira (2013a), “Salvaguarda do Património Cultural Imaterial em Portugal (2007-2011): enquadramentos, paradigmas e instrumentos estratégicos”, in José Luis Mingote Calderón, (ed.), Patrimonio inmaterial, museos y sociedad: balances y perspectivas de futuro. Madrid: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte de España, p. 44-72 [online] http://es.calameo.com/read/000075335489f789a44ae
Costa, Paulo Ferreira (2013b), «O “Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial”: da prática etnográfica à voz das comunidades», in DGPC-Direção-Geral do Património Cultural, Paulo F. Costa (coord.), Políticas Públicas para o Património Imaterial na Europa do Sul: percursos, concretizações, perspectivas, Colóquio Internacional organizado por DGPC-Direção-Geral do Património Cultural, Lisboa, pp. 93-116.
Custódio, Jorge (1993), “De Alexandre Herculano à Carta de Veneza (1837-1964)”, Dar Futuro ao Passado, Ministério da Cultura/IPPAR-Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, pp.34-72.
Desvallées, André, François Mairesse (2010) (dir.), Concepts clés de muséologie, Paris, Armand Colin et ICOM-International Council on Museums, 87 p. [on line] https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/11327.pdf
DGEMN (1999), Caminhos do Património, Lisboa: DGMEN- Direcção-Geral dos Monumentos e Edifícios Nacionais /Livros Horizonte.
Direcção-Geral do Património, Cartas e Convenções internacionais, http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/cartas-e-convencoes-internacionais-sobre-patrimonio/
Direcção-Geral do Património, Ficha de Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (PCI) em www.matrizpci.dgpc.pt;
Fortuna, Carlos e Augusto Santos Silva) (2002) (orgs), Projecto e Circunstância. Culturas Urbanas em Portugal, Porto: Afrontamento.
Gonçalves, Maria Eduarda (org.) (2001), O Caso de Foz Côa: um laboratório de análise sociopolítica, Lisboa: Edições 70.
Gonçalves, Maria Estela Moura Dantas (2008), A Lisboa dos e nos Guias Turísticos. Lisboa a compor-se ao espelho, Tese de Mestrado, Antropologia, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, 196 p.
Guillaume, Marc (2003), A Política do Património, Porto: Campo das Letras, 150 p. (Edição original, 1980).
Hewison, Robert, 1987, The heritage industry: Britain in a climate of decline, Londres: Methuen.
IGESPAR-Instituto de Gestão do Património Arqueológico e Arquitectónico (2010), 100 Anos de Património. Memória e Identidade, IGESPAR/Ministério da Cultura (coord. Jorge Custódio).
IMC (2009), Museus e Património Imaterial: agentes, fronteiras, identidades, Coord. Paulo Ferreira da Costa, Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, Softlimits, 400 p.
INE, I.P. (2009), Estatísticas da Cultura 2008, Lisboa (Açores e Madeira).
IPPAR-Instituto do Património Arquitectónico (1993), Dar Futuro ao Passado, Lisboa, Lisboa: IPPAR.
IPPAR-Instituto do Património Arquitectónico (1995), Critérios - Classificação de Bens Imóveis, Secretaria de Estado da Cultura/IPPAR.
IPPAR- Instituto do Património Arquitectónico (1997), Intervenções no Património, 1995-2000, Lisboa: IPPAR.
IPPAR- Instituto do Património Arquitectónico (2000), Património - Balanço e Perspectivas (2000-2006), Ministério da Cultura/IPPAR.
Karnoouh, Claude (2003), « Europe: patrimoine commun et différences », in Conseil de l’Europe, Prospective: Fonctions du patrimoine culturel dans une Europe en changement, Conseil de L’Europe/Division du patrimoine culturel, pp. 31-53.
Kirshenblatt-Gimblett, Barbara (1998), Destination Culture. Tourism, Museums and Heritage, Berkeley: University of California Press.
Leal, João (2013), “Cultura, Património Imaterial, Antropologia”, in DGPC-Direcção-Geral do Património Cultural, Políticas Públicas para o Património Imaterial na Europa do Sul: percursos, concretizações, perspectivas, Colóquio Internacional organizado por DGPC, Lisboa, pp. 131-145.
Lima, Aida Valadas de (1986), “A agricultura a tempo parcial em Portugal – uma primeira aproximação à sua quantificação”, Análise Social, vol. XXII, nº91, pp.371-379.
Lima, Aida Valadas de (1990), “Agricultura de pluriactividade e integração espacial”, Sociologia – Problemas e Práticas, nº 8, Lisboa: Cies/ISCTE.
Lima, Aida Valadas de, Elsa Coimbra e Alexandra Figueiredo (2000), “Representações e valores sobre a natureza e ambiente”, in João Ferreira de Almeida (org.), Os Portugueses e o Ambiente – I Inquérito Nacional às Representações e Práticas dos Portugueses sobre o Ambiente, Oeiras, Celta.
Lima, Aida Valadas de e Manuela Reis (2001), “O Culto Moderno dos Monumentos. Os Públicos do Parque Arqueológico do Vale do Côa”, in Maria Eduarda Gonçalves (org.), O Caso de Foz Côa: um laboratório de análise sociopolítica, Lisboa: Edições 70, pp. 145-192.
Lima, Aida Valadas de e João Guerra (2004), “Degradação ambiental, representações e novos valores ecológicos”, in João Ferreira de Almeida (org.), Os Portugueses e o Ambiente – II Inquérito Nacional às Representações e Práticas dos Portugueses sobre o Ambiente, Oeiras, Celta.
Lima, Aida Valadas de (2006), "A Valorização Social e Económica dos Recursos dos Territórios Rurais no Contexto das Sociedades Modernas", Cidades-Comunidades e Territórios, nº12/13, pp. 151-158.
Lopes, João Teixeira (1988), A Cidade e a Cultura. Um estudo sobre as práticas culturais urbanas, Universidade do Porto, Dissertação de doutoramento, [online] www.bocc.ubi.pt
Lowenthal, David (2003), Possessed by the Past: The Heritage Crusade and the Spoils of History, Cambridge: University Press (Edição original, 1997).
Macdonald, Sharon (2013), Memorylands. Heritage and Identity in Europe today, Londres/Nova Iorque: Routledge, 293 p.
Magris, Cláudio (2010), Danúbio, Lisboa: Quetzal (Edição original, 1986).
Medeiros, António e Manuel João Ramos (2009) (org.s), “Introdução”, in António Medeiros e Manuel João Ramos (orgs.), Memória e Artifício. Matéria do Património II, Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, pp.11-16.
Moura, Vasco Graça (2013), A Identidade Cultural Europeia, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, Relógio d´Água.
Mozzicafreddo, Juan, Isabel Guerra, Margarida A. Fernandes e João Quintela (1989), "Modelos de gestão e legitimidade no sistema político local", Sociologia, Problemas e Práticas, nº 6: 51 - 80.
Neto, Maria João Baptista (1999), “A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e a Intervenção no Património Arquitectónico em Portugal (1929-1999)”, Caminhos do Património, Lisboa: DGMEN-Direcção-Geral dos Monumentos e Edifícios Nacionais /Livros Horizonte, pp. 23-43.
Peixoto (2002), “Os meios rurais e a descoberta do património”, Coimbra: Centro de Estudos Sociais/Oficina do CES [on line] http://hdl.handle.net/10316/11046
Peralta, Elsa e Marta Anico (2006), Patrimónios e Identidades: Ficções Contemporâneas, Oeiras: Celta.
Pereira, Paulo, (1997), “Acerca das intervenções no Património Edificado. Alguma História”, IPPAR- Instituto do Património Arquitectónico, Intervenções no Património, 1995-2000, Ministério da Cultura/IPPAR.
Pereira, Paulo (2010), “Sob o signo de Sísifo. Políticas do património edificado em Portugal, 1980-2010”, IGESPAR-Instituto de Gestão do Património Arqueológico e Arquitectónico, 100 anos de Património. Memória e Identidade, Ministério da Cultura, pp. 261-280.
Peristiany, John G.(1988) (org.). Honra e Vergonha: valores das sociedades Mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Pinto, José Madureira (1985), Estruturas sociais e práticas simbólico-ideológicas nos campos: elementos de teoria e de pesquisa empírica, Porto: Afrontamento.
Pitt-Rivers, Julian (1988), “Honra e posição social”, in Peristiany, John G. (org.). Honra e Vergonha: valores das sociedades Mediterrâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
QCA-Quadro Comunitário de Apoio II, 1994-1999, Programas Operacionais, [on line] http://www.qca.pt/mapa_site/mapa.asp
QCA-Quadro Comunitário de Apoio III, 2000-2006/ POC, Programa Operacional da Cultura, EU/Ministério da Cultura, 79 p. [on line] http://www.qca.pt/pos/download/2000/poc.pdf
Ramos, Manuel João (2003), “E Tudo o Fumo Levou: As Memórias e as Identidades”, in Ramos, Manuel João (coor.), A Matéria do Património. Memórias e Identidades, Lisboa: Colibri/Departamento de Antropologia do ISCTE, pp. 47-57.
Ramos, Manuel João (2009), “O Património é um roubo intangível” in António Medeiros e Manuel João Ramos (orgs.), Memória e Artifício. Matéria do Património II, Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, pp. 275-300.
Reis, Manuela e Aida Valadas de Lima (1998), “Desenvolvimento, Território e Ambiente”, in José M. Leite Viegas e António F. Costa (orgs.), Portugal, que modernidade? Oeiras: Celta, pp. 329-363.
Reis, Manuela (2004), “Património e Ambiente: duas dimensões da cidadania moderna. Resultados do Inquérito às Atitudes dos Portugueses sobre o Património”, in Luísa Lima, Manuel Villaverde Cabral e Jorge Vala (orgs), Atitudes Sociais dos Portugueses 4 - Ambiente e Desenvolvimento, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, pp.193-238.
Reis, Manuela (2009), “Noções de Património na Sociedade Portuguesa”, in António Medeiros e Manuel João Ramos (orgs.), Memória e Artifício. Matéria do Património II, Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, pp.185-200.
Reis, Manuela, 2016, Cidadania e património: os novos direitos de cidadania, o espaço público e os processos de patrimonialização na sociedade portuguesa, Tese de Doutoramento, Lisboa:ISCTE-IUL, https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/12365
Rodrigues, Jorge (1999), «A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e restauro dos monumentos medievais durante o Estado-Novo», in AA.VV, 1999, Caminhos do Património. DGEMN-Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais/ Livros do Horizonte: Lisboa, pp. 69-82.
Santos, Maria de Lourdes Lima dos (1988) (coord.), As Políticas Culturais em Portugal. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais, pp. 65-70.
Santos, Maria de Lourdes Lima dos (2005) (coord.), Contribuições para a formulação de políticas públicas no horizonte 2013 relativas ao tema Culturas, Identidade e Património, Lisboa: ICS/Observatório das Actividades Culturais, 154 p.
Shanin, Theodor (1976), Peasants and Peasant Societies, Londres: Penguin Books.
Schapira, Sigal Meirovich (2013), “La función social del patrimonio cultural inmaterial y los desafios de su preservación en Chile”, in José Luis Mingote Calderón, (ed)., Patrimonio inmaterial, museos y sociedad: balances y perspectivas de futuro. Madrid: Ministerio de Educación, Cultura y Deporte de España, p. 174-179 [online] http://es.calameo.com/read/000075335489f789a44ae
Silva, Raquel Henriques e Maria Lourdes Lima dos Santos (2000), Inquérito aos Museus em Portugal, Ministério da Cultura/Instituto Português de Museus.
Silva, Augusto Santos e Helena Santos (2010), “A transformação cultural de cidades médias, segundo os seus agentes culturais”, Sociologia, Problemas e Práticas, nº 62, pp. 11-34.
Sobral, José Manuel (2006), “Memória e Identidade Nacional: considerações de carácter geral e o caso português”, ICS/Universidade de Lisboa-Working Papers, 33 p.
Tepicht, Yerzi (1973), Marxisme et agriculture: le paysan polonais, Paris: Armand Colin.
Varine, Hugues (2012), “Reflexões sobre um museu de território”, [on line] http://museudodouro.pt/tpls/mu/files/encontros/pdf/hugues.pdf
Yaï, Olabiyi Babalola J. (2003), «Perspectives Africaines sur le patrimoine culturel» (Communication inaugurale), in Place-Memory-Meaning: preserving intangible values in monuments and sites, ICOMOS-International Council on Monuments and Sites, 14th General Assembly and Scientific Symposium, Victoria Falls, Zimbabwe.

Downloads

Publicado

2020-12-30

Edição

Secção

Ensaio