Apresentação: Memórias coloniais: práticas políticas e culturais entre a Europa e a África

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Apresentação: Memórias coloniais: práticas políticas e culturais entre a Europa e a África

Cláudia Castelo

p. 9-21

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Keywords :Europe, colonialism, Social Memory, Africa

Palavras-chave :Europa, colonialismo, Memória social, África

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Portugal e África: memórias coloniais ou luso-tropicais?

Contributo para uma leitura comparada

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Dedicatória

Agradeço ao Pedro Aires Oliveira as críticas e sugestões que fez a este texto.

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PDFAssinalar este documento

Desde finais dos anos 1990, o debate sobre o passado colonial da França vinha irrompendo no espaço (...)

No início de 2006, no seio do Africa-Europe Group of Interdisciplinary Studies (AEGIS), que agrega vários centros de investigação europeus de estudos africanos, surge a ideia de promover uma maior ligação e cooperação entre as respectivas revistas, nomeadamente através da publicação de números temáticos afins, que permitam uma leitura comparada de fenómenos homólogos. A revista Politique Africaine (do Centre d'etude d'Afrique noire — Institut d'etudes politiques de Bordeaux) sugere o questionamento comum sobre as reconfigurações das memórias do passado colonial, aproveitando o contexto de intenso debate público sobre aquela problemática na sociedade francesa1. Aquela revista tinha já publicado duas contribuições iniciais para o tema (Boilley, 2005; Chréstien, 2005). Um dos textos examinava os debates que se desenrolaram em França a propósito do artigo 4.º da lei de 23 de Fevereiro de 2005, que estabelece que os programas escolares devem reconhecer o papel positivo da presença francesa além-mar, nomeadamente na África do Norte. O outro analisava o passado colonial através da lente do «dever histórico», com alusões ao debate belga sobre a colonização e as suas manifestações recentes (por exemplo, a exposição do Museu de Tervuren, «Mémoires du Congo au temps colonial», 2005).

Os coordenadores do dossiê não quiseram cunhar um conceito, antes sugerir uma metáfora capaz de pot (...)

Em Junho de 2006, a Politique Africaine publica o dossiê «Passés coloniaux recomposés: mémoires grises en Europe et en Afrique», coordenado por Christine Deslaurier e Aurélie Roger, com o objectivo de apreender as implicações políticas dos fenómenos de rememoração relativos à situação colonial na Europa e em África. Trata-se de focar não apenas os usos políticos da memória, do ponto de vista instrumental, mas também as visões parcelares concorrentes no interior das comunidades nacionais e, para além destas, à escala internacional. Inclui artigos sobre as «memórias cinzentas»2 do passado colonial em diferentes contextos pós­ coloniais europeus e africanos.

Romain Bertrand procura compreender o regresso da controvérsia pública em França sobre o «facto colonial», à luz das lutas ideológicas entre dois campos distintos: as associações de repatriados da Argélia e de defesa da memória da OAS (Organisation armée secrete), capazes de influenciar a agenda parlamentar devido ao seu peso eleitoral; e uma nova geração de associações de defesa dos imigrantes que questionam a «integração republicana» dos jovens filhos da imigração. Segundo o autor, a mediatização dos debates sobre a «lei do véu» e, concomitantemente, sobre o Islão em França, ampliados pela dramatização da ameaça terrorista após o 11 de Setembro de 2001, potenciou uma renovada polémica sobre a pedagogia da «integração» e o fracasso da República francesa no ultramar.

Partindo da conexão estreita entre nacionalismo alemão e aventura colonial, Reinhart Kössler discute a amnésia da Alemanha relativamente ao seu breve mas brutal passado de dominação em África. Essa amnésia, que remonta ao fim da II Guerra Mundial, foi posta em causa em 2004, pela celebração do centenário do extermínio de 80% dos Herero da Namíbia pelo exército imperial alemão. As desculpas semi-oficiais apresentadas pela ministra alemã do Desenvolvimento e da Cooperação Económica colocaram na ordem do dia o reconhecimento da responsabilidade e a questão da reparação. No mundo académico e na opinião pública, a discussão sobre a utilização do termo «genocídio» para designar os acontecimentos na Namíbia, enquadrou-se num debate mais geral sobre o significado do colonialismo germânico na história da Alemanha no século XX, muito marcada pela ideia da singularidade do Holocausto.

Do outro lado do espelho, Vicent Bertout disseca as estratégias políticas de manipulação das memórias do genocídio dos Herero na Namíbia, evocado desde 1924 por organizações culturais locais. A conjuntura da campanha eleitoral de 2004 e do centenário do massacre colocou na ordem do dia questões como a expropriação de terras comunitárias pelo Estado colonial ou as reparações do genocídio reclamadas à Alemanha e, surpreendentemente, permitiu uma aproximação entre o governo da Namíbia e os representantes dos Herero. A instrumentalização da memória não se destinou a obter compensações financeiras, como o governo alemão parece julgar, mas faz parte integrante do jogo político daquele país africano.

Caroline Elkins (2005), Britain's Gulag: The Brutal End of Empire in Kenya, Londres, Jonathan Cape; (...)

O livro de Caroline Elkins também foi recenseado em jornais e revistas anglo-saxónicas (vd. http:// (...)

Marie-Emmanuelle Pommerolle analisa o intenso debate suscitado pela publicação de dois estudos históricos sobre a repressão da insurreição Mau Mau, no Quénia3. Os dois estudos coincidem na revelação da extrema violência cometida pelo Estado colonial britânico nos últimos anos de presença no Quénia. Neste país africano, a recuperação da memória da violência sobre os guerrilheiros Mau Mau, serviu para legitimar a coligação que derrotou o partido único em 2002 e as exigências de «justiça» e de «verdade» a propósito dos crimes pós-coloniais. No mundo anglo-saxónico, o levantamento das memórias deste período mal conhecido da história do Império britânico veio sobretudo contestar o suposto pacifismo colonial e a imagem civilizadora do Reino Unido. Ora, a classe política britânica recusa ou prefere deliberadamente ignorar essas memórias. E na academia surgiram críticas à abordagem subjectiva e militante de Caroline Elkins e ao uso intensivo que fez dos testemunhos orais dos Kikuyu4.

Achille Mbembe começa por reflectir sobre as funções do terror, a «parte maldita» da colonização, e sobre as funções fantasmagóricas, a «parte secreta» do potentado colonial. Argumenta que o dispositivo fantasmagórico assenta em dois eixos: o cálculo das necessidades e os fluxos do desejo; entre esses eixos encontra-se a mercadoria. A parte final do artigo inclui uma análise sobre as atitudes dos nacionalismos africanos pós-coloniais em relação às estátuas, aos monumentos e à arquitectura coloniais que ocupavam o espaço público e as ambiguidades em tomo da questão do «nome próprio» dos países, das cidades, das ruas e praças. O autor conclui que o trabalho de memória sobre o passado colonial passa pelo reconhecimento da verdade do que se passou e não pela destruição da sua materialidade e considera que a África do Sul foi o país africano onde essa reflexão foi mais profícua.

O dossiê da revista Politique Africaine termina com a transcrição e a análise por Kalala Ngalamulele do falso discurso do rei Leopoldo II da Bélgica aos primeiros missionários do Congo, que circula por vários países africanos há dezenas de anos (nomeadamente através da Internet) e tem legitimado uma releitura do confronto entre missionários cristãos e colonizadores, no momento em que as Igrejas recrutam em nome da sua «africanidade».

Portugal e África: memórias coloniais ou luso-tropicais?

O mesmo se preparam para fazer as revistas Afriche e Orienti (Bolonha) e Afrika spectrum (Hamburgo)

A memória colectiva opera dentro de quadros sociais (comuns aos indivíduos de um mesmo grupo) e é r (...)

Paul Connerton chama a atenção para a importância da memória como faculdade cultural de transmissão (...)

Com o presente dossiê dos Cadernos de Estudos Africanos procuramos responder ao desafio lançado às revistas científicas europeias de estudos africanos, contribuindo para o alargamento e aprofundamento do debate, numa perspectiva cruzada5. Abordamos o mesmo objecto genérico — a reconfiguração das memórias coloniais na Europa e na África — e partilhamos os mesmos pressupostos teóricos, isto é, o reconhecimento do carácter social e dinâmico da memória6. Queremos reflectir sobre as representações coloniais sob o ângulo das suas permanências na actualidade pós­ colonial. Mais do que as imagens do passado colonial e a recordação dessas imagens, interessam-nos os modos e as lógicas de reconfiguração dessas imagens no presente, em função de considerações do nosso tempo, de preocupações contemporâneas de grupos sociais concretos. Assumimos a noção de memória colectiva como construção e processo social (consciencializada, verbalizada ou incorporada7) e não como mera recordação individual do vivido.

O objectivo deste dossiê é reunir contribuições que clarifiquem, de forma original e plural, a reconstrução da memória do passado colonial na Europa e em África, dando particular destaque a espaços físicos e humanos que integraram o chamado terceiro império colonial português. Os artigos agora apresentados foram elaborados por investigadores de diferentes áreas disciplinares (História, Estudos Africanos, Antropologia, Estudos Literários), recorrendo a metodologias distintas e partindo de pontos de observação geográfica e tematicamente diferenciados: Portugal, Bélgica, Angola e Moçambique; a identidade nacional, a política museológica, o trabalho forçado, as relações inter-raciais e inter-étnicas, a criação literária e a cultura popular (o futebol).

Em traços gerais, o luso-tropicalismo (doutrina desenvolvida pelo sociólogo brasileiro Gilberto Fre (...)

Só muito recentemente um pequeno partido de extrema-direita de fora do espectro parlamentar, o Part (...)

As interrogações dos colegas da Politique Africaine serviram-nos de guia e ajudaram-nos a formular novas questões. Se em França houve quem diagnosticasse uma «fractura colonial» (Bancel, Blanchard & Lemaire, 2006), em Portugal tal não será evidente. No campo político e na opinião pública portuguesa continua a registar-se uma escassez de debate, mormente nos meios de comunicação social, sobre o passado colonial. A colonização não é um assunto discutido na sociedade. Regra geral, faz-se uma avaliação positiva da expansão, dos «Descobrimentos» e do colonialismo português (do Oriente a África, passando pelo Brasil), para a qual concorre uma certa retórica luso-tropicalista muito vulgarizada8, a que não escapa a generalidade do espectro político. As ideias de uma especial capacidade dos portugueses para lidar com outros povos e de uma relação particularmente afectiva com a África e o Brasil, bem como a interiorização da norma anti-racista9, contribuem para a ausência de um questionamento crítico sobre o colonialismo.

Refira-se, a título de exemplo, Orlando Ribeiro (1999), Goa 1956: Relatório ao Governo, Lisboa, CNC (...)

De facto, o Estado português tem preferido evocar o período colonial mais exaltante: a expansão, os «Descobrimentos» e o Império Português do Oriente. Em 1986 criou a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), com o propósito de assinalar oficialmente o ciclo de «descobertas» marítimas portuguesas. Nesse quadro comemorativo, que programaticamente se deveria extinguir em 2000 (passados 500 anos sobre a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil), não havia lugar para revisitar o colonialismo português tardio. Embora a CNCDP tenha patrocinado algumas (escassas) iniciativas que extravasavam o período áureo dos «Descobrimentos» portugueses, fê­-lo sem qualquer visão integrada e apenas respondendo a solicitações pontuais de investigadores10. Dentro da mesma lógica de enaltecimento dos feitos marítimos dos portugueses, em 1998, organizou-se em Lisboa a última exposição universal do século, sob o signo dos Oceanos, e coincidindo o quinto centenário da chegada de Vasco da Gama à Índia.

Depois do 25 de Abril de 1974, da descolonização e da instauração da democracia em Portugal, a política externa portuguesa orientou-se para a Europa, sem esquecer o Atlântico. As relações políticas, diplomáticas, económicas e culturais de Portugal com as suas antigas colónias (do continente africano e com o Brasil) são sempre remíveis a uma suposta irmandade lusófona, assente numa herança histórica e num idioma comum (onde ressoa, entre outras, a ideia de uma comunidade de sentimento e de cultura, teorizada por Freyre, 1951 [1940]: 39). Nessa óptica, em 17 de Julho de 1996, foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que congrega Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, desde 20 de Maio de 2002, Timor-Leste.

Durante o Estado Novo, até ao início da guerra colonial, houve uma certa sintonia entre o regime e (...)

No espaço público português, a memória do «fim do império» é que, de tempos a tempos, irrompe como um problema mal resolvido. O partido mais à direita no parlamento português (CDS-PP) foi porta-voz de algumas reivindicações dos antigos combatentes da guerra colonial e dos chamados «espoliados do Ultramar». Além disso, entre uma parte significativa da população portuguesa, sobretudo a que regressou à antiga metrópole após a independência das ex-colónias, faz-se um juízo muito negativo sobre o modo como se procedeu à descolonização, não obstante a rápida e bem sucedida integração de meio milhão de retornados na sociedade portuguesa (sobre este tópico vd. Pires, 1987). Com o descaso da esquerda11, a direita portuguesa conseguiu impedir que se fizesse um exame crítico do colonialismo tardio, centrando as atenções na descolonização, apresentada como desastrosa, e culpabilizando o Partido Socialista pelos aspectos mais dramáticos do retorno dos portugueses que viviam nas antigas colónias. O êxodo forçado da esmagadora maioria da população branca, as guerras civis em Angola e Moçambique, a falta de democraticidade do regime angolano, os inúmeros golpes militares na Guiné-Bissau são, directa ou indirectamente, assacados à forma como Portugal descolonizou.

Em Lisboa, por pressão de antigos sócios da Casa dos Estudantes do Império, que funcionou para muit (...)

Em Portugal não existe uma política oficial de memória relativa ao chamado terceiro império português: não foi promulgada legislação específica sobre a preservação da memória do colonialismo ou sobre o seu tratamento nos programas escolares; não estão em preparação museus, centros de pesquisa ou outros espaços de evocação e reflexão relativos à nossa presença colonial em África12. No entanto, desde a década de 1980, por iniciativa de associações de antigos combatentes da guerra colonial, foram erguidos, um pouco por todo o país, monumentos aos combatentes e aos mortos do ultramar. Também se lhes prestou homenagem na toponímia. Por iniciativa da Liga dos Combatentes, em 1994, foi inaugurado pelo Presidente da República Mário Soares um monumento aos combatentes do ultramar, junto à Torre de Belém (Lisboa). Nesse monumento, em 2000, o Presidente da República Jorge Sampaio descerrou as lápides com os nomes dos cerca de 9.000 portugueses mortos na guerra. Entretanto, em 1998, fora criado o Museu da Guerra Colonial, na delegação de Famalicão da Associação de Deficientes das Forças Armadas, mediante um protocolo de colaboração com a Câmara Municipal e o Externato Infante D. Henrique, de Ruílhe (Braga). Em 2001, esse Museu organizou a exposição itinerante «Guerra colonial — uma história por contar», que percorreu diversos municípios do país. A lei n.º 9/2002, muito ansiada pelos ex-combatentes, reconhece o seu esforço de guerra para efeitos de aposentação e reforma.

Sobre a reinvenção da história das guerras coloniais e a procura de uma solução terapêutica, moral (...)

Os chamados «retornados» (portugueses e seus descendentes oriundos das ex­-colónias ou que vieram viver para Portugal após a descolonização) e os antigos combatentes encontram-se entre os grupos que, de uma forma mais sistemática, promovem a construção e reelaboração das memórias do passado colonial. Às vezes, em contexto clínico ou de ajuda especializada, como é o caso dos veteranos vítimas da desordem de stress pós-traumático13. Porém, apenas os segundos quiseram e conseguiram colocar algumas das suas reivindicações na agenda política. Os primeiros parecem sobretudo apostados numa rememoração privada ou semi-pública dos aspectos positivos das suas vivências africanas no período colonial (o espaço, o clima, a paisagem, o exótico, a abundância, o nível de vida, o prestígio social, o poder, a infância e a juventude, as sociabilidades, o convívio multirracial, etc.), a que se associa uma condenação implícita da descolonização. Recordam as últimas décadas da colonização, de intenso desenvolvimento económico de Angola e Moçambique, de constituição de «sociedades multiraciais» progressivas no ultramar, lamentam (entre a mágoa e a revolta) a destruição dessas sociedades, a violência, a guerra e o drama do exílio...

Um exemplo recente foi o programa Sociedade Civil (RTP2) de 24 de Abril de 2007, dedicado ao tema « (...)

Na rede global há uma miríade de sites, fóruns de discussão e blogues sobre as ex-colónias portugue (...)

De facto, pouco tempo depois do «regresso das caravelas», grupos de «retornados» (portugueses que viveram ou nasceram numa mesma localidade de Angola ou Moçambique, estudaram na mesma escola ou que trabalharam numa mesma empresa colonial) e de antigos intermediários do império (membros das elites cabo-verdiana, goesa ou timorense do período colonial) começaram a reunir-se anualmente (em almoços, convívios, piqueniques), numa lógica de cíclico «retorno» a um tempo/local de saudade. Nos últimos anos, verifica-se uma apetência crescente por tudo o que tem a ver com as antigas colónias portuguesas. Parece haver uma urgência de convocar essas memórias, mesmo da parte das gerações mais novas que já nasceram depois das independências. Paralelamente, temos assistido a um florescimento de memórias sobre África (que extravasam o tópico da guerra colonial) na imprensa, na produção editorial e audiovisual14. No campo literário, a excelente recepção e o êxito comercial do romance Equador são, como assinala Giorgio de Marchis neste dossiê, um expressivo sinal da «urgência de reconciliação» da «Comunidade mnemónica portuguesa» com o seu passado colonial. A Internet já se afirmou como um espaço privilegiado e pulsante de encontro, partilha e apaziguamento, de repositório e de reconstrução de memórias coloniais15.

No campo das memórias colectivas e das emoções partilhadas pelos portugueses que viveram nas colónias, África é, invariavelmente, o paraíso perdido. A criação de lugares de memória (físicos, simbólicos ou virtuais), a multiplicação de recolhas de testemunhos, a publicação de álbuns de fotografias e de relatos autobiográficos de antigos colonos não é apenas uma manifestação de nostalgia da felicidade pretérita e do império, tem também a ver com a inexorabilidade do tempo: os meios de memória são pereáveis (sobre os conceitos em itálico, vd. Nora, 1984: XVII­-XLII); é agora ou nunca.

Sobre o caso moçambicano, vd. Gabriel Mithá Ribeiro (2000), As representações sociais dos moçambica (...)

Em contextos rurais moçambicanos, entre 1994 e 2002, José Pimentel Teixeira deparou-se com discurso (...)

Nas ex-colónias portuguesas do continente africano, por seu turno, não parece haver uma forte tensão e/ou oposição às memórias veiculadas pela antiga potência colonial. Os governos dos países independentes não terão pejo de usar, em função de agendas próprias, o discurso da irmandade linguística, cultural e histórica. Acresce que em Angola e Moçambique, devido à guerra civil e à vigência de regimes de partido único após a independência, as memórias dos conflitos mais recentes, das dificuldades materiais e da insegurança ontológica sobrepõem-se às memórias do período tardo-colonial16. De forma perversa, e em aspectos concretos, como o desenvolvimento e o dinamismo da economia, a segurança física e material, as infra­ estruturas disponíveis, o acesso ao mercado, a comparação pode até «beneficiar» o balanço que é feito do domínio colonial17. Como mostra Jeremy Ball no presente dossiê, a recolha de testemunhos orais sobre vivências do quotidiano tem a virtualidade de perscrutar com mais pormenor os meandros desses processos de reconstrução da memória do colonialismo e revelar como são recordados alguns dos seus aspectos mais gravosos. No caso vertente, o trabalho forçado, mas também se poderiam levantar memórias sobre o esbulho de terras, as culturas obrigatórias, a discriminação de estatuto jurídico, os entraves no acesso à educação, ao emprego e à promoção social, as prepotências, as arbitrariedades e outras manifestações de racismo.

Sobre esta problemática, subsistem aliás muitos lugares-comuns que importa questionar. A ideia muito disseminada de uma especificidade — positiva — da colonização portuguesa, em comparação com as restantes colonizações europeias, sobretudo em oposição ao sistema do apartheid sul-africano, tem raízes antigas e uma credibilidade que poderá radicar no discurso de cientistas sociais relativamente insuspeitos, como Orlando Ribeiro e Jorge Dias. Sobre as perplexidades e contradições em que se envolve Jorge Dias na análise comparada da realidade do Planalto Maconde (Norte de Moçambique), do Tanganhica e da União Sul-Africana, no que se refere à discriminação e às relações raciais, fala-nos Rui M. Pereira no último texto deste dossiê. Perante testemunhos vivos da iniquidade difusa e arbitrária do colonialismo luso no Norte do Moçambique e da benignidade da «indirect rule» britânica no Tanganhica, é com um certo alívio que Jorge Dias assinala as «vantagens comparativas» do sistema colonial português relativamente ao racismo institucionalizado e explícito do vizinho sul-africano (cf. p. 140).

A suposta imunidade dos portugueses ao racismo ou aquilo que poderíamos denominar um racismo de baixa intensidade eivado de paternalismo, por contraposição a um modelo de racismo institucionalizado, o Apartheid sul-africano, é um argumento usado não apenas pelos ex-colonizadores, mas também por outros grupos étnicos do antigo império português. Mais à frente, Susana Pereira Bastos indica-nos que a reprodução de alguns mitos sobre a especificidade do colonialismo português entre hindus de origem indiana que viveram em Moçambique nas últimas décadas da administração colonial portuguesa pode servir estratégias identitárias de afirmação local e na diáspora portuguesa e britânica, face a outros grupos raciais e étnicos.

No meio académico português, até grosso modo ao 25 de Abril de 1974, privilegiou­ se o estudo do império português do Oriente e do segundo império — das plantações e minas do Brasil —, em detrimento do terceiro império português (1825-1975). A longevidade da ditadura explica a debilidade de uma historiografia anticolonial e a abundância relativa de uma historiografia hagiográfica sobre o império português. Apenas nas últimas três décadas o colonialismo dos séculos XIX e XX se transformou em objecto de pesquisa para a historiografia portuguesa. Surgem estudos apostados em desfazer mitos cuja construção recua ao final de oitocentos e que foram reelaborados pelo nacionalismo imperial da I República e do Estado Novo. Também aparecem trabalhos académicos e de divulgação científica sobre as guerras coloniais.

Mais recentemente, o estudo do colonialismo tardio extravasou o campo da História, sendo apropriado por outras Ciências Sociais (como a Antropologia e a Sociologia) e pelos chamados estudos pós-coloniais. O colonialismo e o pós­ colonialismo entraram nos curricula universitários, seja nas disciplinas de graduação seja como tema de cursos de mestrado. Têm sido organizados colóquios, cursos livres, seminários e exposições sobre o período colonial, ainda que maior incidência nas guerras coloniais e nos movimentos de libertação. Apesar de continuarem a aparecer alguns textos que reificam a nostalgia do passado colonial, surgem cada vez mais trabalhos de investigação apostados em problematizar, comparar e contextualizar para iluminar processos de tensão e negociação, momentos de ruptura e longas persistências. É esse o papel da História: contrariar a tendência da memória para simplificar a compleidade do vivido, para reduzir as lembranças a essências, para exaltar aquilo que convém ao grupo que recorda e esquecer os aspectos mais negativos da sua acção.

Porém, como afirma Valentim Alexandre neste dossiê, as conclusões deste labor historiográfico «transitam dificilmente para a história geral de Portugal, e daí para o ensino-passos essenciais para o exerácio de qualquer influência na reformulação do discurso identitário nacional, tão necessária à adaptação do país a um sistema que se globaliza» (p. 41).

Contributo para uma leitura comparada

Uma leitura cruzada do dossiê «Mémoires grises» da Politique Africaine e do dossiê que agora se publica nos Cadernos de Estudos Africanos permite-nos constatar que a «nostalgia colonial», como nostalgia da grandeza pretérita do país (Blancel, Blanchard & Lemaire, 2006: 23), não é uma singularidade francesa ou portuguesa. O balanço globalmente positivo do passado colonial — enfatizando as vantagens que a «missão civilizadora» ou o encontro de culturas trouxeram aos colonizados — é comum a várias antigas metrópoles. O esquecimento institucionalizado sobre os aspectos mais brutais do colonialismo tardio (o trabalho forçado, as culturas obrigatórias, o esbulho de terras, a violência da administração colonial e a repressão dos movimentos independentistas, etc.) afectou a França, mas também a Alemanha, a Bélgica, a Grã-Bretanha e Portugal.

Refira-se que o jornalista José Amaro, organizador do livro Massacres na guerra colonial: Tete, um (...)

Sobre o inquérito da Comissão das Nações Unidas aos massacres de Moçambique e as pressões internaci (...)

No caso português, os agentes da ruptura revolucionária do 25 de Abril de 1974 — os militares — foram, simultaneamente, os principais agentes da repressão colonial. Este facto conduziu a um silenciamento ou, pelo menos, a uma ocultação das circunstâncias em que ocorreram alguns dos episódios mais cruéis da guerra colonial. Os massacres de Moçambique (Wiryamu e Mocumbura, distrito de Tete, Dezembro de 1972) são um exemplo paradigmático dessa amnésia deliberada: apesar da denúncia do padre Adrian Hastings no jornal londrino Times (10 de Julho de 1973) e das conclusões mais moderadas do inquérito das Nações Unidas, depois da instauração da democracia nunca se procedeu a uma investigação exaustiva do sucedido e houve até manobras de intimidação contra jornalistas que tentaram aprofundar o caso18. Do lado moçambicano não surgiram iniciativas reclamando uma reparação das vítimas, provavelmente porque a Frelimo não quis antagonizar os militares portugueses no período da transição para a independência19.

A enorme visibilidade do debate público em França nos últimos dois anos em torno desta problemática não tem comparação em nenhuma das outras antigas metrópoles europeias e não resulta de dinâmicas espontâneas. Fica a dever-se à grande capacidade de intervenção política das associações dos repatriados da Argélia (pieds-noir) e das emergentes associações de imigrantes. Assiste-se à convocação de memórias coloniais concorrentes em função de estratégias políticas e partidárias locais. Em Portugal, os «retomados» das antigas colónias cedo desistiram de se constituir como um lobby, optando antes por se integrar na sociedade portuguesa. Por sua vez, as associações de imigrantes não têm peso suficiente para influenciar a agenda política.

A notícia foi divulgada na imprensa, nomeadamente por Alexandra Carita, «Museu da língua nasce em B (...)

A persistência em museus das antigas metrópoles de narrativas produzidas em contexto colonial (como no caso do antigo Museu do Congo belga, de Bruxelas, até 2005, tratado neste dossiê por Aurélie Roger) denota que algumas antigas potências coloniais europeias têm revelado maior dificuldade em adequar os seus quadros sociais da memória ao contexto pós-colonial. As narrativas veiculadas pelos novos museus criados ou em preparação em várias cidades da França correspondem à vontade de valorizar a presença colonial francesa, em resposta a exigências de associações de repatriados da Argélia (Bancel, Blanchard & Lemaire, 2006: 18). Por seu turno, a inauguração em 2006 da Cidade nacional de história da imigração, nas instalações do antigo Museu das Colónias (Paris), inviabiliza a reutilização daquele lugar emblemático como um lugar da memória da colonização. Em Portugal, o Ministério da Cultura anunciou que tem em preparação um Museu do Mar e da Língua Portuguesa para o edifício do antigo Museu de Arte Popular, em Belém (que por sua vez funcionava num pavilhão da Exposição do Mundo Português, de 1940), cujo conceito associa a língua às navegações portuguesas20. Pouco se conhece do projecto, mas nada faz supor que inclua uma abordagem crítica e plural do que foi o colonialismo português em África. O Reino Unido parece ser o país que mais rapidamente e com maior eficácia reactualizou a sua política museológica em relação ao império, adaptando-a ao seu discurso oficial, o multiculturalismo (veja-se o caso do British Empire and Commonwealth Museum, em Bristol).

Nos países que estiveram sob o domínio colonial, as narrativas identitárias nacionais tiveram de fazer uso da memória da dominação colonial e da luta contra o colonialismo. As relações que estabeleceram com o passado colonial não foram unívocas nem lineares. Hoje, em África, as memórias coloniais não servem apenas para revelar episódios de opressão, violência e sofrimento que tiveram lugar no passado, legitimar os movimentos independentistas e afirmar a nação; são utilizadas, de forma deliberada, em jogos políticos locais; e estão impregnadas em aspectos da cultura política e da cultura popular, que adquiriram larga autonomia em relação ao legado colonial, como nos revela Nuno Domingos a propósito do futebol em Moçambique.

Só no final dos anos 80, um conjunto de historiadores e antropólogos começa a procurar novas fronte (...)

Na historiografia europeia é recente o desenvolvimento da investigação científica sobre a história dos impérios, numa perspectiva que vise ultrapassar o duplo simplismo do anticolonialismo e da hagiografia, convocando e confrontando diferentes fontes (incluindo as fontes orais, particularmente relevantes no trabalho de campo em África), revisitando acontecimentos pouco estudados, questionando representações concorrenciais. Tal reflexão está mais avançada no Reino Unido e em França do que em Portugal21. Nas ex-colónias o panorama historiográfico também não obedece a um nível uniforme de desenvolvimento. Porém, até há pouco tempo, na maioria dos países africanos, a história do colonialismo esteve ao serviço da criação de uma narrativa nacional.

À margem da produção institucional de memória, em África e na Europa, emergem na cena pública e no quotidiano outras formas de reprodução de memória sobre o passado colonial que tanto podem operar por contaminação, emulação ou oposição, e têm obrigado a algumas reconfigurações da memória oficial do colonialismo. Para as antigas metrópoles coloniais continua a ser conveniente esquecer os aspectos brutais e desumanos da dominação colonial e exaltar os seus benefícios materiais e «civilizacionais»; para as ex-colónias é importante lembrar a exploração colonial de matérias-primas e mão-de-obra e esquecer algumas ambiguidades da luta de libertação (animosidades étnicas, lutas intestinas pelo poder, dependência relativamente a patronos externos, etc.) e alguns comprometimentos estratégicos neo-coloniais. Mas no interior destes dois grandes pólos de produção das memórias coloniais, convivem memórias contraditórias e concorrentes entre si, pois a lembrança e o olvido são processos em recomposição permanente, em função das estratégias e das agendas de cada grupo social, situado historicamente.

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Bibliografia

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2016-02-24

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Nota Editorial