Introdução

Amílcar Cabral: Legado revolucionário e ressonância contemporânea

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DOI:

https://doi.org/10.15847/cea48.43780

Resumo

O centenário de Amílcar Cabral constitui uma oportunidade essencial para refletir sobre uma das figuras políticas e intelectuais mais influentes das lutas anticoloniais em África. A sua vida e obra simbolizam a complexa transição da dominação colonial para a construção de Estados independentes, mas também a passagem de modelos de desenvolvimento impostos externamente para uma práxis endógena de libertação, enraizada na cultura, na história e na agência dos povos.

O impulso global pela descolonização intensificou-se após a Segunda Guerra Mundial. Por toda a África e Ásia, as reivindicações de soberania cresceram, alimentadas pelo fortalecimento dos movimentos nacionalistas e apoiadas pelas mudanças no sistema internacional. A criação do Comité Especial das Nações Unidas para a Descolonização, em 1961, formalizou esta nova agenda global. Contudo, nessa altura, várias nações africanas já tinham alcançado a independência, e muitas outras o fariam ao longo da década de 1960.

Portugal, porém, destacou-se pela diferença. O regime autoritário do Estado Novo ligava a sua sobrevivência ao império colonial, insistindo que Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e o Estado Português da Índia (Goa, Damão, Diu, Dadra e Nagar Aveli) não eram colónias, mas sim “províncias ultramarinas”. Este disfarce semântico pouco alterava as realidades coloniais de exploração, subjugação cultural e hierarquia racial. Enquanto outros impérios europeus negociavam transições para a independência, Portugal manteve-se fiel a um imperialismo anacrónico, forçando os movimentos anticoloniais a escolher entre a submissão e a luta armada.

Foi neste contexto que Amílcar Cabral emergiu como figura central. Nascido em Bafatá, na Guiné-Bissau, filho de pais cabo-verdianos, a sua vida incarnava os destinos entrelaçados da Guiné-Bissau e de Cabo Verde – ligação que viria a consagrar no programa do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Os seus anos de formação em Lisboa, nas décadas de 1940 e 1950, foram decisivos. Aí, envolveu-se num amplo círculo de estudantes e intelectuais africanos, participando na Casa dos Estudantes do Império, onde as ideias anticoloniais circulavam lado a lado com projetos culturais e literários.

Entre os seus interlocutores, destacou-se o angolano Mário Pinto de Andrade, o seu principal alter ego intelectual. A amizade entre ambos foi mais do que pessoal; constituiu um diálogo contínuo sobre a natureza da opressão colonial, o papel da cultura na resistência e os fundamentos teóricos da libertação. Mário de Andrade tornar-se-ia mais tarde o biógrafo de Cabral, assegurando que o seu legado fosse não só registado, mas também criticamente analisado. Outros membros desta rede, como o também angolano Agostinho Neto, o moçambicano Marcelino dos Santos e Francisco José Tenreiro, natural de São Tomé, desempenharam igualmente papéis cruciais na emancipação política e cultural de África lusófona. Ainda assim, a contribuição de Cabral foi singular: desenvolveu uma teoria da libertação que transcendia os slogans nacionalistas, articulando a descolonização das mentes, a valorização da cultura indígena e o uso estratégico do conhecimento para a transformação social.

Cabral aliou a sua formação como agrónomo à liderança política, unindo a análise científica à práxis revolucionária. Compreendia que a libertação não podia ser reduzida a uma vitória militar ou à independência política; exigia uma redefinição do desenvolvimento, enraizada na dignidade, na equidade e na afirmação cultural. O seu assassinato em 1973, apenas alguns meses antes da declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, privou o continente de um dos seus líderes mais visionários. Ainda assim, as suas contribuições intelectuais e políticas continuam a ter ressonância global.

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Publicado

2025-10-22