Só os soldados cansados ganham batalhas

Authors

  • Jorge Tavares Faculdade de Medicina Universidade do Porto

DOI:

https://doi.org/10.25751/rspa.3672

Abstract

 

A Anestesiologia sofreu um impulso decisivo durante a 2ª Guerra Mundial (1939-1945) com os desempenhos médicos em condições precárias e com a necessidade de respostas para questões concretas e imediatas para as quais não havia resposta. A transposição crítica e o estudo científico posterior de muitas destas “aventuras” resultaram na criação da Anestesiologia tal como a conhecemos hoje. Os médicos portugueses que então estagiaram no Reino Unido, na Argentina e nos EUA1 e que regressaram a Portugal para o exercício exclusivo ou prioritário da especialidade, iniciaram um trabalho de implantação e organização da especialidade de acordo com padrões internacionais de modernidade.

Com esse trabalho,1 a Anestesiologia veio a integrar a carreira médica hospitalar em igualdade com as outras especialidades médicas, passou a ocupar o seu espaço em serviços hospitalares próprios e independentes, integrou a Ordem dos Médicos com identidade própria, criou uma Sociedade Científica que publica uma revista, alargou a sua atividade para fora do bloco operatório onde foi pioneira na criação e desenvolvimento da Medicina Intensiva, da Medicina de Emergência e da Medicina da Dor, encarregou-se da formação dos seus novos membros e da atualização dos antigos, implantou uma abordagem do risco numa perspetiva própria, passou a participar nos organismos políticos e científicos da Anestesiologia Mundial e Europeia, aproveitou o doutoramento de especialistas para atingir posições académicas universitárias, passou a integrar o currículo do ensino médico pré-graduado, assistiu ou promoveu o doutoramento de mais anestesiologistas, viu alguns destes envolverem-se em programas de investigação, próprios ou em colaboração com outras áreas do saber médico, com repercussão internacional.

É assim legítimo admitir que a implementação da especialidade concebida pelos seus pioneiros foi um êxito. Mas a vida não para, muita coisa mudou e a Anestesiologia tem que responder a novos desafios. Como os anestesiologistas não estão à espera que alguém de fora faça o seu trabalho, a eles cabe perspetivar os caminhos futuros e fazer as opções que mais lhes interessam.

Este objetivo tem estado sempre presente na preocupação dos pares portugueses da Anestesiologia. A Sociedade Portuguesa de Anestesiologia criou um Grupo de Missão e organizou, desde 2004, Foruns organizacionais, em que se debateram alguns destes temas e se chegaram a conclusões relevantes, nomeadamente em matéria de segurança. Um grupo de anestesiologistas elaborou o documento “Estratégias para o Desenvolvimento da Anestesiologia Portuguesa”, com o objetivo de serem entregues ao poder político. Embora a reflexão proposta não tenha esse objetivo, o resultado destes trabalhos é seguramente um contributo valioso.

Primeiro, tem que definir o que querem da especialidade e do seu papel no contexto global da Medicina em Portugal. Feita esta opção, devem refletir sobre os objetivos a atingir e o desenho dos caminhos que darão eficácia e sustentabilidade a essa sua opção. E finalmente, ordenar e pôr em prática as conclusões dessa sua reflexão.

Este editorial, que surge na sequência da análise que a escrita de textos2 e a proferição da ´´Ultima aula” na Universidade3 propiciaram, pretende ser um contributo para esta reflexão. Não pretende esgotar o tema – o que é fácil de verificar pela sua leitura – mas pretende provocar outros contributos para a definição dos trajetos e das prioridades desse caminho.

Parece óbvio que os Anestesiologistas Portugueses, pelo menos a sua maioria, consideram que a autonomia da especialidade é um legado inalienável. Assim como o é a sua competência em Medicina Intensiva, em Medicina de Emergência e em Medicina da Dor. E que a Anestesiologia é uma especialidade médica, reconhecendo que o atributo de especialidade auxiliar ou de meio auxiliar de diagnóstico e terapêutica são estadios passados do seu desenvolvimento.

Mas estas evidências situam-se hoje numa medicina diferente no exercício e na organização. As áreas da competência da Anestesiologia passaram a ser também da competência de outros especialistas. Muitos anestesiologistas deixaram de estar diretamente ligados a serviços públicos hospitalares, onde a carreira médica lhes assegurava a igualdade de circunstâncias com os outros especialistas e onde usufruíam de carreira estável. Estas novas circunstâncias permitem que, aqui e ali, se notem tentativas de considerar que o lugar de trabalho dos anestesiologistas é apenas o bloco operatório e os outros locais onde se fazem anestesias, sob a direção do cirurgião ou de outro não anestesiologista, com critérios diferentes de atribuição das compensações.

Manter a autonomia, as áreas de competência e a igualdade com outras especialidades e com outros especialistas não são uma tarefa exclusivamente sindical, nem uma questão de resiliência passiva ou ativa, antes passam pelo assumir de atitudes positivas, que coloquem a especialidade em patamar de notoriedade e os anestesiologistas em parceiros de qualidade indiscutível.

Nesta base, consideremos os caminhos que se me afiguram prioritários. O primeiro destes caminhos deriva da constatação de que os anestesiologistas portugueses fazem tão bem como os melhores, sabem tanto como os melhores, mas são pouco considerados pela comunidade anestesiológica internacional. A este nível, o reconhecimento está relacionado, bem ou mal, com a publicação de resultados de investigação em revistas indexadas, sobretudo com fator de impacto. Isto é, com a participação na investigação e na inovação.

A valorização da comunicação e a publicação nas grelhas de avaliação curricular, sobretudo na prova de atribuição do título de especialista, foi o primeiro passo de um objetivo mais amplo: à promoção da comunicação para conseguir melhor pontuação deveria seguir-se a publicação em extenso. Depois – e este parece o momento asado para tal – a organização de projetos de investigação, fomentados e controlados por instituições idóneas.

O entendimento de que o progresso passa pela ciência é comum ao discurso oficial em países como o nosso. Mas a investigação médica não é sinónimo de laboratórios de investigação básica servidos por propaganda mediática, mas diz também respeito à investigação com doentes e em doentes. Mas já não é comum olhar para esta com a mesma consideração com que os responsáveis pela Ciência olham aquela. À Sociedade Portuguesa de Anestesiologia parece destinado o papel de catalisador da criação destes projetos, de avaliador da qualidade do trabalho e de agente para a sua inclusão na rede científica nacional. A experiência demonstra que os trabalhos dos doutoramentos são ponto de partida natural para iniciar este caminho.

O segundo caminho refere-se à recertificação. Uma especialidade com recertificação gera especialistas considerados. Os modelos que estão a ser ensaiados em muitos países estão naturalmente longe da ideia inicial de exame clássico e periódico por pares. Assiste-se ao ensaio de vários modelos mas não ao ensaio da recertificação, já que esta começa a ser ponto assente. Os modelos ensaiados são diversificados, mas sempre dependentes dos pares. Caberá assim naturalmente ao Colégio de Especialidade da Ordem dos Médicos, por excelência o órgão dos pares, o iniciar esta tarefa, optando por um modelo que melhor se ajusta às características culturais dos anestesiologistas portugueses. Os Serviços de Anestesiologia com grande dimensão e diversificação de valências serão os colaboradores privilegiados do Colégio nesta tarefa.

Seja qual for o modelo, recertificação significa formação. E esta é, em última análise, da responsabilidade do interessado. A Anestesiologia Portuguesa, através das suas instituições, dos serviços e das universidades, exibe um passado consistente em matéria de colocação de meios de formação ao dispor dos seus membros. A recertificação exigirá um aprofundamento da qualidade e da oportunidade desses meios, que passará pela reformulação ou mesmo reinvenção das formas tradicionais e envolverá o recurso a métodos modernos de comunicação e às tecnologias da simulação.

Nas circunstâncias atuais, estes caminhos não são fáceis. A gestão empresarial centralizada dos Hospitais públicos “por folhas de Excel” acarreta a imposição de decisões não participadas pelos interessados e atribui – na realidade, que não no discurso – à motivação dos trabalhadores um papel discreto e muito secundário, o que dificulta a investigação, a análise científica dos desempenhos e a criação de inovação e lhes confere um peso muito discreto e secundário, quando não inexistente.

A dificuldade ou impossibilidade de atribuição de horas de trabalho hospitalar para investigar e recertificar-se, dificulta a sua execução, o que aponta para a investigação e a recertificação em exercício. Os anestesiologistas têm que convencer administradores e políticos que a investigação e a recertificação tem como único objetivo a melhoria da qualidade dos cuidados prestados. Tal como acontece nos países com que nos comparamos, trabalhar nestas tarefas exige um esforço adicional ao serviço de uma ambição pessoal, social e profissional. Natural e legitimamente, muitos anestesiologistas assumem uma posição distante desta: fazem bem o que tem para fazer de acordo com o seu contrato e não querem que os incomodem: desde que lhe paguem certinho, está tudo bem.

Mas dificuldades não são impossibilidades. As muitas dificuldades porque passaram os pioneiros da especialidade não travaram a sua determinação. Os seus desafios foram diferentes, mas não menos custosos de perseguir.

Só os soldados cansados ganham batalhas.

 

1. Tavares J. História da Anestesiologia Portuguesa. 2ª ed. Lisboa : Sociedade Portuguesa de Anestesiologia; 2013.

2. Tavares J. Serviço de Anestesiologia do Hospital de S. João. 50 anos de Pioneirismo. Na Anestesia e nos Cuidados Peri-Anestésicos. Na Medicina Intensiva e na Reanimação. Na Emergência. Na Analgesia do Trabalho de Parto. Na Medicina da Dor. Na Qualidade e na Segurança. Na Educação Médica e no Aperfeiçoamento Profissional. Porto: Edição Serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar S. João, EPE; 2011.

3. Tavares J. A Anestesiologia, disciplina académica. Última lição proferida a 06.07.13, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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How to Cite

Tavares, J. (2014). Só os soldados cansados ganham batalhas. Journal of the Portuguese Society of Anesthesiology, 23(1), 6–7. https://doi.org/10.25751/rspa.3672

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Section

Editorial

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