In Memoriam // Pedro José Ruela Torres (1922-2014)

Autores

  • Humberto Machado Serviço de Anestesia do Centro Hospitalar do Porto
  • Maria de Fátima Pina Diretora do Serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar S. João
  • Jorge Tavares Professor Catedrático jubilado de Anestesiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, chefe de serviço reformado do Serviço de Anestesiologia do Hospital S. João

DOI:

https://doi.org/10.25751/rspa.4834

Resumo

Pedro José Ruela Torres, nascido no Porto a 16 de julho de 1922, foi um dos primeiros médicos portugueses que, após a realização de um estágio no estrangeiro, passou a dedicar-se exclusivamente ao exercício da Anestesiologia. Contribuíu de forma notável para o reconhecimento e para a instalação da especialidade em Portugal.

Pedro Ruela Torres iniciou o seu contacto com a anestesia através do anestesista Victor Hugo Magalhães, recém-regressado do estrangeiro, durante um estágio que realizou nos Hospitais Civis de Lisboa após a sua licenciatura e com vista a ser ortopedista.

Após regressar ao Hospital Geral de Santo António encontrou um ambiente favorável à introdução da Anestesia Moderna no Hospital, sobretudo da parte do cirurgião Araújo Teixeira. Durante as conversações neste sentido com a Mesa da Santa Casa da Misericórdia do Porto, proprietária do Hospital, deixou claro que não aceitava ser o assistente de um cirurgião (como era então habitual com quem administrava anestesias) mas que queria ver criado um Serviço de Anestesia, independente dos de Cirurgia, que congregasse todos anestesistas do Hospital, fosse a sede da formação de futuros especialistas e assumisse a responsabilidade pelo equipamento próprio e de que fosse contratado como diretor antes de partir para um estágio no estrangeiro.

Assinou este contrato a 3 de março de 1948, antes de seguir para Londres, com o compromisso de organizar, quando regressasse, o referido serviço e de nele provar o aproveitamento do estágio. Este, realizado a expensas próprias, durou 4 meses, um período de tempo então considerado como longo. Após o regresso, iniciou funções como diretor de serviço a 15 de julho desse mesmo ano. Este serviço de Anestesia foi, em simultâneo com o do Hospital da Marinha em Lisboa, um dos primeiros criados em Portugal.

De acordo com a entrevista que deu a Joana Mourão em 2011  por ocasião das comemorações dos 50 anos do Serviço de Anestesiologia do Hospital S. João, Pedro Ruela Torres considerou que o que aprendeu em Londres foi decisivo para a possibilidade “de realização de novas técnicas cirúrgicas, com destaque para a cirurgia pediátrica, neurocirurgia, cirurgia cardio-torácica, microcirurgia em otorrinolaringologia, mercê dos novos anestésicos, dos relaxantes musculares, da reabilitação da raquianestesia, dos métodos de hipotensão induzida, bem como de material muito diversificado que fui obrigado a adquirir por não existir no nosso país”.

Pedro Ruela Torres rapidamente alargou a sua atividade a outros hospitais, como ao Hospital de Crianças Maria Pia, ao Hospital Rodrigues Semide (Ortopedia) e ao Hospital de Matosinhos, bem como às casas de saúde da cidade do Porto onde acompanhava cirurgiões de diversas especialidades na sua atividade privada. O regímen de funcionamento dos hospitais permitiu-lhe ser o anestesista das primeiras cirurgias cardíacas realizadas no Hospital de S. João ainda antes de com este ter qualquer contrato (o respetivo livro de registos é aberto em 10 de setembro de 1959 por uma comissurotomia mitral com Pedro Ruela Torres como anestesista, tal como sucede em todos os registos seguintes).

Na referida entrevista, Joana Mourão, lançou-lhe o desafio de que, perante esta intervenção pessoal tão afirmativa, era natural que se tivesse rapidamente transformado no “anestesista do Porto”. Pedro Ruela Torres comentou: “É possível que o reconhecimento, tanto por cirurgiões como por pacientes, dos benefícios desta nova especialidade e a publicação dos primeiros artigos na imprensa médica, tenham contribuído para a divulgação do meu nome, a par de outros colegas, meus assistentes no Hospital de Santo António, o Dr Ribeiro dos Santos e a Drª Leonor Ribeiro”. A lista de publicações de Pedro Tuela Torres, referente a esses anos (ver adiante), revela a sua influência na implantação da anestesia moderna em Portugal.

O Hospital Escolar de S. João entrou em funcionamento em 1959, com o objetivo de alavancar a inovação e a educação médicas tendo em vista a melhoria da qualidade da Medicina exercida em Portugal de um modo geral e no Norte de um modo particular, o que passava pelo desenvolvimento de especialidades emergentes e pela introdução de novas tecnologias de diagnóstico e terapêutica. Mas o Hospital foi criado sem Serviço de Anestesia.

A insustentabilidade desta situação levou ao convite dirigido a Pedro Ruela Torres para que fosse criar e organizar o Serviço de Anestesia do novo Hospital. O Serviço foi reconhecido em 3 de Dezembro de 1961. Pedro Ruela Torres tomou posse como seu diretor em 15 de Dezembro de 1964. Exerceu estas funções até à aposentação (29 de Janeiro de 1987), com a relevante particularidade de ter sido o primeiro não professor da Faculdade de Medicina a ser nomeado diretor de um serviço clínico de um Hospital Escolar. O facto de o diretor ser um especialista e não um professor não-anestesiologista foi relevante para a implementação da Anestesia no Hospital, ao permitir-lhe tomar assento no Conselho Médico em igualdade de circunstâncias com os diretores dos restantes serviços clínicos, nomeadamente dos cirúrgicos.

Em 1954-1955 foi mobilizado para a realização de uma Comissão Militar em Goa, Estado Português da Índia. Esta interrupção da atividade profissional e este deslocamento para paragens tão longínquas, bem como as circunstâncias em que se processou a mobilização, foram-lhe muito penosas. Do tempo passado em Goa há registos do interesse que sempre revelou pela formação de outros anestesistas.

Os médicos licenciados na Escola Médico-Cirúrgica de Goa só podiam exercer em Portugal depois de obterem a equiparação numa das Faculdades de Medicina Portuguesas. Desta constava a elaboração de uma dissertação. Em duas dessas dissertações apresentadas à Faculdade de Medicina do Porto sobre temas de Anestesia (Um esteróide em anestesia, de Francisco Avelar Barreto em 1959 e Contribuição para o estudo duma técnica de descurarização em anestesia, de Pedro António de Sousa Monteiro em 1960) há palavras de homenagem e de gratidão a Pedro Ruela Torres pela forma como, no Hospital de Ribandar, em Goa, incutiu nos seus autores o interesse pela prática da Anestesia bem como pelo seu papel na elaboração destes trabalhos (equivalente ao orientador dos dias de hoje).

Pedro Ruela Torres assumiu em simultâneo a direção dos serviços de Anestesia dos Hospitais Geral de Santo António e Escolar de S. João até meados de 1967, quando decidiu fixar-se neste último.

Em 4 de Maio de 1963, as diligências de Pedro Ruela Torres resultantes da sua leitura do papel das unidades de ventilação mecânica que surgiam por todo o mundo civilizado na sequência da epidemia de poliomielite de 1947-1953, levaram à criação de uma Unidade de Reanimação Respiratória como parte integrante do Serviço de Anestesia. Este passou então a adotar a designação de Serviço de Anestesia e Reanimação. A unidade ficou constituída por 8 camas equipadas com ventilador mecânico e monitor cardíaco e servida por um corpo de enfermagem exclusivo e permanente e por um Laboratório próprio.

A formação de novos especialistas constituiu outra das preocupações dominantes de Pedro Ruela Torres enquanto diretor do Serviço de Anestesia e Reanimação do Hospital S. João. Os primeiros internos chegaram ao Serviço em 1970. Pedro Ruela Torres criou no Serviço um inovador Conselho de Internato. As reuniões deste Conselho (que funcionou até 1974) estão documentadas em Livro de Atas de cuja leitura é possível inferir do estilo de gestão que identificava Pedro Ruela Torres: auscultação de outras opiniões e assunção de que todos assumiam as responsabilidades que lhes cabiam ou ele lhes atribuía.

A partir de 1974, o Serviço passou, durante cerca de um ano, a ter uma direção colegial, a que presidia. As atas dessas reuniões revelam que as suas grandes preocupações na direção do serviço continuaram a ser a formação dos internos, a integração dos anestesistas no novo mapa do pessoal hospitalar e a melhoria das condições de trabalho, nomeadamente na Unidade de Reanimação Respiratória.

Em 1984, patrocinou a elaboração e a aplicação prática de um documento sobre a Função Pedagógica do Serviço, precursor em Portugal na adoção e promoção das primeiras indicações europeias de programação sistematizada da formação dos futuros especialistas em Anestesiologia. A concretização do conteúdo deste documento constituiu um dos alicerces para o desenvolvimento da vertente académica do serviço.

Pedro Ruela Torres foi igualmente o promotor de reuniões internacionais de Anestesia e Reanimação destinadas à formação contínua dos anestesiologistas e que, pela qualidade de um corpo docente que incluía individualidades de relevo na anestesia nacional e mundial e pela atualidade dos temas abordados, se tornaram uma imagem de marca do Serviço. As duas primeiras, em 1969 e em 1972, tomaram a forma de cursos, que além de incluírem demonstrações práticas nas salas de operações, revelaram a sua preocupação com a formação dos anestesiologistas em ciências básicas.

Pedro Ruela Torres foi um dos anestesistas que participou das diligências que levaram à criação da especialidade de Anestesiologia na Ordem dos Médicos (o que sucedeu em 1955) e à da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia como secção da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa. Presidiu à direção da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia em 2 mandatos consecutivos (1960-64).

Em conclusão, Pedro José Ruela Torres integrou a geração dos pioneiros da Anestesiologia. Demonstrou desde sempre que sabia o que queria da especialidade e contribuiu para a sua implementação em Portugal. A independência em relação aos cirurgiões e direções hospitalares permitiu-lhe grande liberdade na prossecução dos objetivos traçados. A sua atuação mereceu-lhe a atribuição pelo Presidente da República da Comenda da Ordem de Mérito e pelo Ministério da Saúde da Medalha de Prata dos Serviços Distintos, ambas em 1989. Foi uma das 50 figuras (ou factos) da história do Hospital S. João escolhidas para figurarem com um estandarte na exposição do seu cinquentenário que esteve patente nas ruas envolventes do Hospital (2008-9).

Quando em 2011 lhe foi perguntado como via o futuro da Anestesiologia, Pedro Ruela Torres respondeu: “Com alguma preocupação. Perante certas situações, revejo condições obtidas à custa de muita e persistente luta, e que infelizmente as gerações mais recentes parecem não terem sido capazes de manterem. Mas tenho esperança que esta pequena entrevista sirva para que tomem consciência do árduo trabalho desenvolvido pelos seus antecessores na prossecução de objetivos bem definidos e continuem a manter com firmeza uma postura que dignifique a Anestesiologia”

Pedro José Ruela Torres faleceu no dia 3 de maio de 2014.

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Publicado

2014-07-01

Como Citar

Machado, H., Pina, M. de F., & Tavares, J. (2014). In Memoriam // Pedro José Ruela Torres (1922-2014). Revista Da Sociedade Portuguesa De Anestesiologia, 23(3), 98–100. https://doi.org/10.25751/rspa.4834

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