Como ficar em casa?

Crise Pandémica e Crise na Habitação - Mulheres em foco

Autores

  • Ana Estevens Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, Universidade de Lisboa

DOI:

https://doi.org/10.18055/Finis22099

Resumo

O livro/guia Crise Pandémica e Crise na Habitação - Mulheres em foco[i], organizado por Joana Pestana Lages e Sílvia Jorge (2020), surge como resultado do projecto de investigação Como ficar em casa? Intervenções imediatas no combate à COVID-19 em bairros precários da AML. Este projecto, coordenado pela investigadora Joana Pestana Lages, foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ao abrigo da linha Gender Research 4 Covid 19, em articulação com a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, com o apoio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, e teve a duração de quatro meses. A equipa interdisciplinar, constituída por elementos provenientes de várias áreas científicas, permitiu uma abordagem mais ampla do diálogo entre habitação, género e pandemia. Nesta recensão considera-se que a perspetiva crítica feminista, a par das metodologias de investigação, que privilegiam uma construção colectiva do conhecimento, são elementos relevantes para explorar outros olhares na geografia social e urbana e na mudança social.

Como referem várias investigadoras que se debruçam sobre as geografias feministas (Doreen Massey e Linda McDowell entre outras), o espaço não é neutro e há diferenças na vida e na forma como a mulher vive o lugar da casa (André, 1990; Montaner & Muxí, 2011; Muxí, 2018; Pestana Lages, 2020). Olhar para a casa e para a sua intimidade, num momento de pandemia como o que estamos a viver, é, também, olhar para o mais íntimo, para o espaço interior que devia ser de segurança e conforto. Este livro debruça-se sobre a experiência de mulheres, pobres, portuguesas e migrantes e coloca em evidência a crise da habitação[ii], que tem estado tão presente nos discursos dos últimos anos, a par de outros problemas sociais que persistem no país (desemprego, violência doméstica, desigualdade social, estigmatização, por exemplo).

O livro está dividido em três partes. Na primeira, as experiências de dez mulheres são trazidas ao visível a partir das suas histórias de vida e da sua voz, possibilitando uma aproximação à realidade de bairros e a situações de precariedade que muitos desconhecem: bairros de habitação precária[iii], casas ocupadas, casas emprestadas, casas alugadas, quartos alugados, situações de sem abrigo e despejos, associados a processos urbanos mais complexos como o aumento do valor das rendas, a gentrificação ou a turistificação da cidade. Na segunda parte, nove investigadores e investigadoras de diferentes áreas disciplinares cruzam os seus olhares sobre habitação, género e pandemia. A terceira e última parte, debruça-se sobre o trabalho empírico desenvolvido em três bairros da Área Metropolitana de Lisboa: Alfredo Bensaúde (Lisboa), Cova da Moura (Amadora) e Terras da Costa (Almada): i) um inquérito aplicado a “232 situações, cobrindo um universo de 860 pessoas” (Lages & Jorge, 2020, p. 97), de onde se destaca: 55% de mulheres solteiras, 64% com frequência escolar até ao 3º ciclo, 52% do universo serem trabalhadoras da limpeza, 21% são mães solteiras, 54% portuguesas, 70% alugam casa, 16% não tem ligação à rede de saneamento, 17% não tem água e 3% não tem electricidade, 14% tem divisões sem janelas e 43% desconhecia o leque de medidas decretadas dirigidas à habitação; ii) workshops; iii) um manual com as normas em vigor e as orientações para ficar em casa, traduzido em várias línguas, nomeadamente o árabe e o crioulo cabo-verdiano; e iv) o desenvolvimento de ferramentas e estratégias potenciais de ação.

É um trabalho de investigação que consegue colocar em destaque problemas estruturais da sociedade portuguesa que perduram há várias décadas: a habitação, as desigualdades sociais, o papel da mulher ou o trabalho e que a pandemia de COVID-19 vem destapar. Em março de 2020, o Governo pediu a todos e a todas para ficarem em casa, potenciando a diminuição do contágio, realizando as suas tarefas laborais e escolares à distância. Contudo, este pedido, que se tornou uma obrigação nos diversos estados de emergência decretados, não distinguiu as diferentes formas de habitar ou melhor, os diferentes tipos de habitação existentes na cidade. Falar de uma casa sem água, sem luz, sem esgotos, construída em madeira e com telhado de chapa, é diferente de falar de uma casa com todas as infraestruturas básicas e construída segundo os critérios de construção definidos. São universos muito distintos em que as condições de habitação influenciam a saúde, o trabalho ou o ambiente familiar de quem aí reside (ex. o aumento da violência dentro de casa). Depois há o outro lado da história. Se nos focarmos no trabalho: “Com a COVID, quem trabalha nas obras e na limpeza nunca parou, nem abrandou o ritmo” (Lages & Jorge, 2020, p. 39). Se nos focarmos na divisão do trabalho centrada no género: no inquérito aplicado, 74% das mulheres responderam que a pandemia veio sobrecarregar as tarefas em casa. Estes são apenas dois dos eixos explorados ao longo do livro.

Naturalizar os processos de desigualdade de género, como acontece muitas vezes, serve apenas para aumentar e reforçar o fosso já existente. As construções sociais produzidas ao longo dos anos que colocam a mulher no lugar da cuidadora, daquela que tem maiores obrigações na família e que perante as relações de trabalho se depara com questões de hierarquia desiguais é não querer olhar para o papel que a mulher tem no quotidiano. É não querer ver que no dia-a-dia da luta pelo direito à habitação são as mulheres que avançam: A. refere “Tive de me encher de coragem e ir à Câmara. Os homens são mais tímidos, não se expõem tanto” (Lages & Jorge, 2020, p. 47).

O que este livro vem destacar não são situações novas, são relações sociais, económicas e políticas que nos últimos anos se têm agravado e que a pandemia de COVID-19 veio trazer ao visível com maior violência. Contudo, e apesar de não serem situações novas, este trabalho veio levantar questões que não têm sido devidamente investigadas ou, pelo menos, não têm merecido o devido destaque na agenda urbana. A investigação tem-se centrado, essencialmente, no centro da cidade, deixando à margem deste trabalho o que se passa nas suas periferias. A casa: qual o papel da casa? De que casa estamos a falar (Moreira, 2020)? Quais as condições de habitabilidade das casas? Precisamos manter o distanciamento e lavar as mãos com maior frequência para garantirmos o mínimo de segurança na propagação da pandemia mas se estamos a falar de habitações precárias sem água, com fazemos? Além da segurança sanitária, a forma como é feita a comunicação das medidas, das regras e das normas exigidas são, também, aqui salientadas. A linguagem utilizada não vai, muitas vezes, ao encontro da precariedade descrita neste livro. Reflectindo esta preocupação dedicam-lhe um capítulo onde discutem a importância de uma expressão oral e visual entendível por todos e todas: “considerando que algumas e alguns de nós vivemos em casas sem janelas, que dormimos na mesma divisão e nos deslocamos para o trabalho de maneira que não é possível manter distâncias, visualizar estes gestos ou acções é um dos papéis do design neste projecto” (Lages & Jorge, 2020, p. 93). Para facilitar esta comunicação, produziram um folheto, que está, também, disponível online. Neste elemento, essencialmente, gráfico e de fácil leitura são explicados os cuidados básicos elementares a ter dentro de casa neste tempo de pandemia, tendo em conta as medidas anunciadas pela Direção Geral de Saúde.   

Apesar de ser um livro que resulta de um projecto de investigação, desenvolvido num curto espaço de tempo, tem o mérito de querer alcançar um público mais vasto, tornando-se acessível àqueles que se encontram afastados da academia. Esta forma de divulgação de ciência tem na sua génese a preocupação de chegar àqueles e àquelas sobre e para quem se trabalha. Deste modo, o livro/guia pode “ser livremente descarregado, apropriado, lido e criticado por todas e todos” (Lages & Jorge, 2020, p. 4).

Apesar de todas as situações de precariedade descritas e do olhar crítico que se tem perante elas, este livro contribui, ao mesmo tempo, para se pensar um futuro mais sustentável, defendendo-se uma outra casa e um outro habitar. Esta perspectiva de futuro é reforçada na última parte do livro, onde são enumeradas ferramentas e estratégias potenciais de ação: suspender os despejos sem alternativa habitacional; prosseguir com Estratégias Locais de Habitação, no âmbito da Nova Geração de Políticas de Habitação, sensíveis ao género; garantir solução de alojamento para todas as vítimas de violência doméstica; encontrar alternativa aos lugares de sobrelotação; criar respostas rápidas nos lugares onde as infra-estruturas básicas não estão asseguradas; mapear lugares através das vivências/experiências das mulheres; informar e capacitar para o conhecimento dos direitos e apoios; reconhecer as lideranças locais de mulheres. Estas sugerem linhas para uma gestão e um planeamento da cidade com preocupações de género num período de pandemia mas que podem potenciar reflexões mais profundas sobre o modo de produzir cidade.

Quem pode ficar em casa? Como ficar em casa? São questões que vão continuar a soar nos nossos ouvidos e sobre as quais este livro é um bom exemplo de um trabalho de investigação feito com consciência política e de cidadania.

 

[i] Lages, J., & Jorge, S. (Coords.). (2020), Crise Pandémica e Crise na Habitação - Mulheres em foco [Pandemic crisis and housing crisis – women in focus]. DINÂMIA’CET-ISCTE.

[ii] Esta crise é uma consequência do aumento do preço das rendas e da diminuição da habitação disponível no mercado a preços que possam ser suportados pelos ordenados e pensões médias em Portugal.

[iii] Veja-se o site do projecto ExPERts: http://expertsproject.ics.ulisboa.pt/ onde é possível identificar os bairros de habitação precária ainda existentes, a par dos bairros de realojamento construídos no âmbito do Plano Especial de Realojamento.

 

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Publicado

2021-08-05 — Atualizado em 2021-08-05

Versões

Como Citar

Estevens, A. (2021). Como ficar em casa? Crise Pandémica e Crise na Habitação - Mulheres em foco. Finisterra, 56(116), 251–253. https://doi.org/10.18055/Finis22099

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Atualização bibliográfica